Opinião

Diário da Peste. O elegante movimento do cavalo

Diário da Peste,
8 de Maio

“Falo-vos à mesma hora que o meu pai falou, há 75 anos”, discurso da Rainha Isabel II. Ontem.
75 anos da rendição nazi.
Ela lembra que assistiu à festa da vitória, da varanda, com os pais e Winston Churchill.
Pandemia pode durar até ao fim do próximo ano. Novo estudo fala em 18 a 24 meses.
Em casa, janela e porta.
Na rua, jogo de xadrez. Cada pessoa pára ou avança ocupando um quadrado imaginário.
“Cada um no seu quadrado” - canção kitsch brasileira.
Cada um no seu quadrado a ser totalmente livre no seu quadrado a ser totalmente livre no seu quadrado.
O artista Bruce Nauman a rodear o perímetro de um quadrado com o seu andar lento e levemente perverso.
Como um animal a marcar território com os pés.
O médico e escritor, Mbate Pedro, disse que em Moçambique, por falta de água, as pessoas higienizam as mãos com cinza.
Mãos, cinza e água.
Na rua, jogo de xadrez.
Levar para a rua um quadrado imaginário como quem leva uma ideia fixa.
No seu quadrado imaginário cada um faz o que quer.
Mudos uns, outros gritam - alguns cantam.
Muitos ingleses, por exemplo, saem à rua para cantar o hino da II Guerra, "We'll Meet Again".
Foi um pedido da Rainha Isabel II.
“Nunca desistir, nunca desesperar”, um lema antigo.
Uns, torre: avançam sempre em frente.
Outros percorrem diagonais.
A rainha no xadrez pode tudo, e o rei é protegido por todos.
Um cartaz à frente de um hospital: Se estás à espera de um sinal, este é o sinal.
Uma mulher passa e fixa os olhos na frase.
Sem parar, continua o caminho.
Talvez o ritmo do passo tenha mudado durante uns metros. Mas pouca coisa que a pressa é muita.
“Irá a felicidade encontrar-me?”, alguém diz.
No meio da multidão é preciso levantar o braço.
Porque é que a felicidade te irá escolher, se todos estão com o braço no ar?
Na cidade demasiadas pessoas a repetir: irá a felicidade encontrar-me?
Um braço no ar é mais visível em pleno campo ou no deserto. Mas há menos gente para o ver.
É uma questão demográfica: Deus tem de estar mais atento às cidades.
Se estás à espera de um sinal, este é o sinal.
Nunca desistas, nunca desesperes.
Na rua, a passo lento ou rápido. Avançar e evitar o que surge antes do choque: a mera proximidade.
Estar próximo substitui nestes dias o concreto toque e o choque de frente.
Como se o corpo humano tivesse aumentado de sensibilidade e tamanho.
A menos de um metro, o novo corpo já sente dor.
Na rua, pessoas como peças do inimigo, paradas e em movimento de ataque ou defesa.
Auden: “Porque aqueles que têm horror a afogar-se, podem morrer de sede.”
Nem naufrágio antes do tempo, nem sede desnecessária.
Um pensamento: na rua e o xadrez de novo.
Lembro-me do elegante movimento do cavalo que passa por cima dos obstáculos sem morrer e sem matar.
Em vez da arte do vôo, a arte do cavalo – eis o pedido ao Nosso Senhor destes Dias.

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Índice

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