Opinião

Diário da Peste. O sol recuou para que as plantas e os homens percam a noção do calendário

Diário da Peste,
7 de Maio

O sol recuou para que as plantas e os homens percam a noção do calendário.
Os dias tornam-se idênticos entre si e parecem mudar de posição -como jogadores enfastiados por estarem sempre no mesmo sítio.
Uma quinta-feira que sabe exactamente como um sábado; o mesmo cheiro e sabor, os mesmos sons.
Mas não é sábado, é quinta.
Nicole Sirotek, enfermeira de Nevada.
Foi trabalhar em Nova Iorque durante a crise do coronavírus.
Disse: “As vidas dos negros não importam aqui”.
Falou de “negligência grave” na gestão médica.
Alguém escreveu um dia que dois barcos de mercadores de escravos se chamavam Voltaire e Rousseau.
Dar o nome de homens bem livres aos barcos negreiros.
Dar nome aos bichos, aos comboios, aos aviões, aos barcos.
Mas também às bicicletas, ao skate, aos patins.
Dar um nome por cima de outro nome para que o primeiro nome desapareça.
Uma estratégia política.
“EUA. 60% das Máscaras importadas da China com defeitos.”
A política é o que faz um homem quando os outros estão a olhar para ele.
Quando não está rodeado de olhos, o humano faz coisas apolíticas - e muito.
Subitamente, sem olhos à volta, o homem volta à floresta.
Mesmo que em casa.
Dois nomes têm as coisas, um nome que vem da sua prática natural e um nome que vem de um qualquer baptismo aleatório.
Se chamares avião a um barco ele não levanta voo.
Lições rápidas de linguagem e hipocrisia.
Barcos que transportam escravos de nome Voltaire e Rousseau fazem o mesmo que barcos com bandeira preta.
Roma ainda com uma protecção em redor da cabeça e Jeri já adaptada a esta segunda cabeça da companheira.
Nas praias fala-se de drones a vigiar, bandeira indicando lotação máxima. Em redor, grades.
O espaço público torna-se todo marcado, de entrada restrita.
Trump diz que crise do novo coronavírus é "pior do que Pearl Harbor" e do que o 11 de setembro.
Os humanos querem bem mais do que o mínimo, mas os dias não estão sequer para vontades médias.
“Metade das companhias aéreas pode desaparecer”, garante dirigente da IATA.
Número de mortes sobe no Irão após abertura das mesquitas.
Ritos de entrada e de saída.
Aprender rituais de saída da primeira parte de um século.
A parte de um século que é parte inteira porque está encerrada.
Foges do ar e das coisas lá fora e fechas-te em casa.
Por vezes: o perigo está dentro, outras vezes fora.
Centenas de relatos de distúrbios mentais.
Falo para os meus cães e eles são tão atenciosos que fingem dar-me atenção.
Sair de casa com cuidado. Celan.
“Põe o ferrolho /à porta: há rosas na casa”.

----------------

Índice

Diário da Peste. O medo tem de voltar ao coração dos animais selvagens
Diário da Peste. Estão com fome e perderam o medo
Diário da Peste. É muito estranho uma máquina parecer triste
Diário da Peste. Aguardamos instruções do Estado para nos aproximarmos da alegria

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate