Diário da Peste,
4 de Maio
Não ouvis por todo o lado estes gritos de terror a que normalmente chamam silêncio? O início de um filme de Herzog.
Dizem que “o sector da aviação vive os dias mais negros da sua história” e que há 16.100 aviões parados.
A imagem de aviões parados há semanas, vazios.
Rodeados muitas vezes de outras máquinas que de cima parecem tristes.
É muito estranho uma máquina parecer triste.
Uma definição possível: sem pessoas à volta, uma máquina parece perder o norte, o sentido.
Fica desorientada e só não grita porque não foi programada para isso.
Mas faz aquilo a que chamamos silêncio.
A Alemanha prolonga os controlos fronteiriços até 15 de maio e três médicos caíram de janelas nos hospitais da Rússia.
Talvez tenham sido empurrados, talvez se tenham empurrado a si próprios.
No mesmo dia, notícias: está para breve o alívio, impossível o alívio para breve.
Duas vezes infectado, não é possível. Duas vezes infectado, talvez seja possível.
Fechar ou abrir. Abrir e noutro lado fechar.
“Investigadores israelitas desenvolveram anticorpo que ataca e neutraliza o coronavírus” e outras notícias.
Relatos do abandono de alguns velhos em lares.
Ninguém os vem visitar e eles ficam junto à Nossa Senhora das Janelas à espera da aproximação de um carro que páre em frente ao edifício.
Mas os carros não têm parado.
O cineasta Herzog conta a história.
Conheceu na Austrália o último falante de uma língua.
Fazia uns sons que pareciam disformes, mas eram uma língua.
Como não era compreendido por ninguém, era considerado mudo.
Era deixado de lado, um solitário.
Cantava.
Outras vezes ia sozinho para uma máquina automática de refrigerantes com muitas moedas no bolso.
E colocava as moedas nas ranhuras.
Gostava daquele som da moeda ao longo da máquina.
Talvez lhe parecesse uma música ou alguém que falava com ele.
Qualquer som fala com uma pessoa, se esta estiver atenta. E solitária.
E é isso: uma moeda a cair numa máquina automática pode fazer companhia a um ser humano.
Ainda o murmúrio do Jardim de Morya: “as flechas sem força caem.”
É evidente que não é a flecha que tem ou não força.
Nem sequer o arco.
É o braço que segura no arco.
Que depende do braço e da mão que seguram na flecha.
Muitas flechas sem força estão a cair.
Não ouvis por todo o lado estes gritos de terror a que normalmente chamam silêncio? O início de um filme de Herzog.
Mais sons vindos da cidade.
Hoje o dia está meio aberto e meio fechado. Quando abre, o limoeiro ganha cor.
----------------
Índice
Diário da Peste. Aguardamos instruções do Estado para nos aproximarmos da alegria
Diário da Peste. Proibido sentar nos bancos que são feitos para sentar
Diário da Peste. Um cavalo branco atravessa uma estrada vazia
Diário da Peste. O humano é um animal que sabe esperar
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt