Diário da Peste,
7 de abril
Vejo Jean-Luc Godard. Live Instagram.
Um charuto entre os dedos por vezes, e na boca quase sempre.
Em redor, máscaras em alguns rostos.
Fala de forma clara ou semi-clara, às vezes longas pausas.
Imagino a câmara de Godard apontada para as notícias televisivas.
Ou para as páginas dos jornais.
Fixa como se estivesse hipnotizada.
O olho da câmara cede e fica parado para sempre.
Como se obedecesse às ordens do exterior.
Isto basta, diria ele. As notícias.
A sessão diária de Manu Chao: "preciosa mujer"
"Tu ontem não confiaste em deus".
“Hoje por sorte não é ontem".
Pura sorte.
Michael Gove, o ministro dos Assuntos Políticos.
Entrevista à BBC radio, sobre o internamento do primeiro ministro inglês.
Fala do “"gosto pela vida" que Boris Johnson tem, quer seja num court de ténis ou a liderar o governo.”
"É uma força da natureza", diz.
Não está ligado a um ventilador, noticiam os jornais.
A frase de Godard: não é sangue, é vermelho.
O que se vê num ecrã não é sangue, é uma cor.
Uma espécie de pintura. Não é real nem verdade.
Só fora do ecrã o sangue é sangue.
Mas esta peste não tem sangue.
Uma das raras tragédias em que não há sangue.
Difícil entender tragédia sem sangue.
Mal-habituados por Quarantino, Tarantino, Quarentino: sangue mais vermelho do que o máximo de vermelho real possível.
Pensar nos quatro elementos – terra, ar, água e fogo.
Esta será uma tragédia ligada ao elemento ar.
Os pulmões e a falta de respiração.
Quando se fala de Tsunami nos hospitais, digo.
Não é um tsunami de água, claro, mas de corpos doentes.
Um tsunami sólido.
Um tsunami de corpos em estado sólido com absoluta falta de ar.
Um tsunami de sólidos que querem respirar.
Uma tragédia do ar.
E também um pouco do fogo, sim.
Imagens em algumas cidades da América Latina: queima-se à frente da casa de família mortos que não são recolhidos pelo Estado.
Para não contagiarem.
Os corpos ardem a muitos graus Fahrenheit, bem mais acima do que os livros.
Ou não.
Uma hierarquia da resistência dos materiais baralhada pela biologia.
O mais importante por vezes é o que mais rapidamente cede.
A que temperatura ardem os corpos? faço essa pergunta ao google.
Mas ele não responde de uma forma directa.
Foge, desvia-se, fala de outro assunto.
Por exemplo: aparece uma página com o título: Efeitos do Inverno no nosso corpo.
Até as máquinas e os algoritmos têm limitações e pudor.
Não repito a pergunta ao google.
Não quero insistir.
O colar no pescoço da minha pastora Roma tornou-a um tanque doméstico com pêlo.
Fala-se do membro fantasma nos humanos: o que se perdeu e ainda se sente.
Com os animais o inverso: o funil à volta da cabeça ainda não entrou no corpo.
Roma bate contra tudo como se estivesse cega.
As notícias. Uma imagem de uma catedral de Nova York.
Tudo é um possível hospital.
O que está a acontecer com os espaços?
Morreu a subdiretora-geral da Saúde portuguesa Catarina Sena, aos 47 anos, “vítima de doença prolongada”.
"Levou a vida a dizer mal dos gatos e no fim foi adoptada por um, de quem se tornou cúmplice.”
“Ofereceu-me uma oliveira, chorou comigo e por mim, trabalhou comigo, ajudou-me muito, mas muito, uma companheira perfeita. Fazes-me uma falta incalculável. Espero ter estado à tua altura", escreveu a directora-geral da saúde.
Em que momento do dia nos podemos comover?
Dizem-me que há um pai que sempre que quer chorar vai à varanda do seu apartamento para os filhos não verem.
Os filhos pensam que ele vai apanhar ar.
Leio a notícia.
“Esta noite tem uma boa razão para ir à janela e olhar para o céu. Vem aí uma lua 'cor-de-rosa'”.
“A lua cheia vai parecer 14% maior e 30% mais brilhante.”
As percentagens invadem tudo, até o brilho.
Reino Unido com recorde diário de mortes: 854 nas últimas 24 horas
“França. Novo balanço dá conta de ...”
Nova York, Nova York.
Talvez o pai não saiba que os filhos também vão à varanda chorar para o pai não ver.
Dizem que vão apanhar ar.
George Kubler escreveu em tempos: a actualidade “é o momento em que o farol fica escuro entre os clarões”;
“é o instante entre os tiquetaques de um relógio”.
Esta noite os pais e os filhos têm uma boa razão para ir à janela: fingir que a lua ainda importa.
Leio outra vez este número: mais de dez milhões de novos desempregados nos Estados Unidos da América.
Poucos tempos são tão actuais como este agora.
A actualidade não é uma luz, é o oposto.
“é o momento em que o farol fica escuro entre os clarões”.
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Diário da Peste. O humano número 486
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