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Gastronomia na Graciosa: qual é a receita para uma ilha inteira no menu?

O caranguejo fidalgo é uma das iguais da Graciosa
O caranguejo fidalgo é uma das iguais da Graciosa

Os Açores já não são um segredo tão bem guardado, mas ainda há tesouros por descobrir. Na Graciosa, a segunda ilha mais pequena do arquipélago, a gastronomia pode ter um papel de relevo na construção de um destino vulcânico de nicho

Quando os níveis estão demasiado elevados, é impossível descer os 183 degraus da escadaria em caracol que ligam o mundo ao interior do vulcão. Noutras vezes, é preciso subir mais cedo do que o esperado. Quando o perigo está controlado, surge a oportunidade de entrar neste local desconhecido da maioria que o Príncipe Alberto I do Mónaco explorou já no século XIX. À época, quando o monarca desceu à gruta em rappel, fê-lo pela entrada mais estreita. Mas hoje é pela abertura maior que a descida é feita.

“Glup, glup, glup”, ouve-se do interior da Terra. A lama é cinzenta, quente e borbulha compassada. São bolhas de grandes dimensões, que crescem a tempo certo e cuja força impressiona. É ali, àquele campo de desgaseificação, que se recomenda ir quando tudo parece garantido. Não está, e o perigo mortal do lago de águas frias no fundo é conhecido. Já houve morte por inalação de gases (por ser mais denso que o ar atmosférico, o CO2 acumula-se na zona mais baixa da caverna) e os passeios turísticos de barco foram suspensos há mais de 30 anos. Hoje a situação é diferente, embora se atinjam níveis de concentração letais frequentemente.

Os valores de dióxido de carbono na Furna do Enxofre são medidos a cada instante, para garantir a segurança de quem a visita, mas não é por isso que pode esquecer-se o lugar em que se está. Este é o interior da mais alta cúpula vulcânica em território europeu, e essa incerteza sobre o que está sob o chão que se pisa é característica marcada em cada graciosense.

Eurico Picanço parece estar envolvido em todas as atividades da ilha. É quase omnipresente, ao volante da sua carrinha

“Eu durmo duas horas e estou aqui”, congratula-se Eurico Picanço, que parece não querer perder cada minuto disponível. De manhã à noite, parece estar envolvido em todas as atividades da ilha — é quase omnipresente, ao volante da sua carrinha —, embora haja um lugar em que este homem de patilhas longas, conhecido por todos, parece realizar-se especialmente. Hoje será ele um dos maiores guardiões do património gastronómico da Graciosa, que guarda mas também partilha na sua casa do pomar, junto à povoação de Guadalupe.

As lapas, muito apreciadas tanto no Arquipélago dos Açores como na Madeira, não são todas iguais. Na Graciosa, são consumidas grelhadas ou ao natural. Embora estejam entre as mais carnudas, não perdem o sabor

Sopas do Espírito Santo e cozido com o mesmo nome, se o dia for de carnes. Caranguejo fidalgo, lapas frescas ou grelhadas, cracas, tortas de patinha (uma espécie de patanisca feita com algas) e peixe cozinhado na folha da figueira, quando é do mar que o alimento vem. Pão caseiro, massa doce e papas, o arroz doce tradicional, para a sobremesa. Tudo regado com vinhos caseiros, de um território vitivinícola que hoje não tem a marca do Pico mas que quer marcar pela diferenciação — embora ainda lute pelo seu pequeno lugar num mercado global.

LUGAR PARA VIVER

Esta é uma terra dos que vivem lá desde sempre, mas estes são cada vez menos. É que os últimos Censos apontam para 4090 habitantes, mas esses são números que os graciosenses sabem ser muito superiores à realidade de quem percorre as estradas da ilha, que conta com 12,5 quilómetros de comprimento e sete quilómetros de largura máxima — lugar onde até há poucos anos as distâncias ainda eram medidas em hectómetros. Aqui contam-se também todos os estudantes deslocados, muitos deles a viver quase todo o ano no continente.

Seria um desconto a fazer nas cadeiras e bancos vazios do centro de Santa Cruz da Graciosa, mas a verdade é que não são tantos os lugares livres nas esplanadas montadas junto aos Pauis da Vila. Os turistas internacionais, muitos vindos da Europa Central, estão a descobrir a segunda ilha mais pequena do arquipélago. E já começam a deixar a sua pegada, visível também na oferta gastronómica: há um novo quiosque onde a cozinha vegetariana ganha palco e uma loja onde a spirulina é rainha, paredes-meias com um antigo coreto. Muito antes disso já Franco Ceraolo se encontrava na ilha.

Franco considera 'Guigo' o verdadeiro chefe entre os burros que cria na ilha. Não pode estar no mesmo espaço que os outros machos

O italiano, cujo avô materno “era romano de oito gerações”, mudou-se de Itália para a Graciosa há 15 anos, fixado pelo amor a um animal em risco de desaparecer — e que em parte se assemelha aos burros anões da Sardenha. “O burro da Graciosa foi um motor da economia da ilha, fundamental na cultura e história local, mas estava em perigo, pelo que era necessário apostar na preservação da raça e das tradições”, explicou Franco ao Expresso. Em 2013 eram apenas 44 os animais na ilha, mas a população tem vindo a crescer também fora da Reserva dos Burros da Graciosa — e este ano estreia-se até uma minissérie de Gonçalo Tocha (também autor do documentário “É na Terra não É na Lua”, sobre o Corvo) dedicada ao tema. As filmagens de “O Burro de Ouro” duraram dois anos e meio e contaram com a participação da população local.

Há na Graciosa um sentido de comunidade raro no país. O isolamento provocado pela insularidade explicará parte do fenómeno mas não todo. Ao longo do ano não faltam festividades a unir a população — de um forte Carnaval às Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres (em agosto), sem esquecer as celebrações do Espírito Santo (em maio) — e esse será um dos segredos. Outro é a noção de interdependência entre todos. Dos que trabalham a terra (produzindo carne e legumes) aos que transformam os alimentos em alimento (seja na forma de queijos — cujos cristais, que na verdade são grânulos de tirosina, atestam a qualidade, de queijadas afamadas ou de refeições tradicio­nais), todos se conhecem. E contam também com o que o Atlântico oferece, muitas vezes em troca de muito esforço.

As tradicionais tortas de patinha são uma espécie de patanisca feita com algas

A VIDA A BORDO

Agora o som já não é do centro da terra, é do mar. “Glup, glup, glup.” São as boias do barco do mestre Mário a adivinhar que o mar não estará para brincadeiras. “É melhor sentarem-se, que vai dar rolo”, avisa o homem de 65 anos que há mais de 50 não conhece outra vida que não a da faina. O vento de nordeste está como o mar, “mas o pior é entre o porto e o ilhéu do Carapacho”, descansa o Expresso, referindo-se ao rochedo em frente à povoação com o mesmo nome — onde o termalismo promete ajudar a combater a sazonalidade do turismo que anima a ilha nos meses mais quentes —, para depois continuar a apontar para terra.

“A seguir à ponta da serra, viramos para fora”, remata. A ilha de forma alongada, de noroeste para sudeste, ainda está cor de breu, mas Mário conhece-a de cor, pelo que não hesita sempre que estica o dedo em direção ao recorte que começa a vislumbrar-se à medida que as horas passam. A pesca começa cedo, a saída do Porto da Praia estava marcada para as 3h30, e antes das quatro já se havia zarpado.

Ricardo aprendeu com o pai, Mário, as lides da pesca à linha no mar do Açores. Mas das águas da Graciosa não chegam apenas peixes como abrótea, bocanegra, peixão ou congro.

Na família de Mário o horário não se estranha. A atividade já vem de outras gerações — o pai era pescador, andou na baleia e nos atuns — e a continuação da pesca à linha está garantida na linhagem. O filho Ricardo, que “não quis estudar”, seguiu-lhe os passos até ganhar autonomia: “Agora é ele quem manda”, garante o homem, para quem o filho olha quase sempre em busca de aprovação.

Mais reservado do que o pai, a quem não faltam histórias para contar, concentra-se a manobrar a embarcação numa noite exigente para quase todos. Ou mesmo todos, à exceção do homem mais longevo, que se desloca de pé na instável embarcação como se pisasse terra firme. Rosalina, a mulher com quem casou há 44 anos e que há 44 anos o espera em terra, abana a cabeça sempre que o marido conta mais uma aventura, mas já nada a surpreende no homem que há muito dá sustento à família com o que vem do mar — e que cozinha como ninguém os peixes que traz do mar dos Açores.

Abrótea, bocanegra, peixão e congro, com molho à pescador, viriam a ser as estrelas do almoço, mas primeiro era preciso apanhá-los. Já passa das cinco e meia da manhã e agora é na popa que há trabalho para fazer. A pesca à linha de mão é exigente e está na hora de argolar os iscos. A cada ida para o mar são preparados 30 a 40 anzóis. “A tradição é almoçar quando se vem do mar”, mas não basta iscos argolados para conseguir levar para terra os melhores peixes.

A existência do engodo é um segredo mal guardado, mas não é por isso que não existe secretismo nesta pasta de peixe cujo cheiro enjoa os humanos mas encanta os animais. A receita é passada entre gerações, cada família de pescadores terá a sua, e a de Mário terá sido melhorada ao longo de décadas. O primeiro a deixar-se encantar foi um peixão, espécime acobreado da família do goraz, mas isso não bastava para o almoço que horas depois viria a juntar mais de 20 pessoas à mesa, no armazém de Mário. Aqui, o molho de peixe à pescador, preparado no momento, foi mesmo rei. Mas há quem prefira os sabores da terra.

O SABOR DA MEMÓRIA

Sopa de funcho com conduto, milho velho, feijão e linguiça, morcela, linguiça, torresmos de vinha d’alhos ou de água e sal, milhanga de fígado, sangue cozido com molho das vindimas, molho de bofos com carne e coração ou sarapatel são alguns dos pratos típicos que agora se procura fixar no receituá­rio graciosense. “Glup, glup, glup”, ouve-se ainda no borbulhar dos caldos — umas vezes tão intenso como o da fumarola vulcânica, outras mais calmo a convidar os sabores a libertarem-se lentamente. E são esses os caldos que não podem ser esquecidos.

Márcia Luísa sabe disso como poucos — gere o restaurante Costa do Sol e mexeu em quase tudo para devolver os sabores tradicionais ao espaço que já pertencia à família do marido —, mas não esconde o entusiasmo na procura de outras técnicas para elevar os pratos que conhece desde sempre. De bloco de notas na mão e telemóvel a gravar cada passo, foi uma das participantes do workshop que juntou a restauração local a três chefes convidados, numa iniciativa do projeto SABOREA – Destinos Turísticos Gastronómicos e Sustentáveis, “que tem como objetivo primordial o desenvolvimento de destinos turísticos de base gastronómica, tendo por base a relação com o meio e a sustentabilidade da atividade”, explica a organização.

Os chefes André Cruz, Nuno Bergonse e Paulo Lourenço (à dir.) na produção agrícola de Emanuel Ferraz (à esq.)

Ao longo de uma semana, esteve com André Cruz (do Restaurante Feitoria, Lisboa, com uma estrela Michelin), Nuno Bergonse (consultor gastronómico) e Paulo Lourenço (do Restaurante Q.B., na ilha Terceira) a aprender novas formas de cozinhar, juntando ingredientes inesperados aos alimentos mais nobres com os quais está habituada a trabalhar.

O objetivo é transformar a cozinha dos restaurantes, devolvendo-lhe os produtos locais — muitos deles de crescimento espontâneo, hoje esquecidos — e valorizar a oferta gastronómica. No domingo passado, Márcia Luísa abriu um segundo espaço no Clube Naval e já está a aplicar o que aprendeu. Do empratamento, mais elegante do que antes, até já fazem parte flores comestíveis de origem local. A ilha, que já estava no mapa, agora também está no menu.

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