Maior reator de fusão nuclear do mundo fixa novo recorde de energia e confirma desmantelamento
O Tokamak do JET fecha a operacionalidade com um recorde de 69 megajoules de energia
JET
Se o plano original tivesse sido cumprido, o JET não teria chegado a 2023 com um novo recorde na produção de energia por fusão nuclear. Os 69 megajoules produzidos correspondem teoricamente às necessidades energéticas de 12 mil pessoas - mas apenas se essa produção fosse permanente. Reino Unido diz que pretende manter participação no ITER, mas os efeitos do Brexit são cada vez mais notórios
Foi numa encruzilhada entre futuro e passado e ciência e geopolítica, que o Joint European Torus (JET) anunciou esta quinta-feira mais um recorde na produção de energia através de um reator de fusão nuclear. Segundo os investigadores, a infraestrutura científica situada na localidade de Culham, Reino Unido, alcançou, a 3 de outubro, um novo recorde com a produção de 69 megajoules de energia, que dariam para suprir as necessidades de 12 mil pessoas se fossem disponibilizados de forma contínua.
O ensaio usou apenas 0,2 miligramas de combustível formado por átomos de deutério e trítio e durou apenas cinco segundos. Tendo em conta que o JET já havia batido este recorde em 2022, o novo máximo poderia ser visto apenas como mais um entre muitos – mas não é o caso. Depois de 40 anos de funcionamento, o reator europeu, que é provavelmente o maior do mundo na sua tipologia, não conseguiu produzir mais energia do que aquela que gasta – e vai ser desmantelado nos próximos tempos. O que pode ser suficiente para mudar o cenário da atual corrida científica à fusão nuclear.
“O governo britânico está a levar a cabo um plano conhecido pela sigla STEP, que já prevê a construção de um tokamak mais compacto no Norte de Inglaterra”, explicou em conferência de imprensa Ian Chapman, diretor executivo da Autoridade de Energia Atómica do Reino Unido (UKAEA).
Tokamak é o nome derivado de uma sigla de origem russa que é usado pela gíria para referir câmara toroidal de confinamento magnético, que geralmente é usada para albergar o choque de átomos.
O líder da UKAEA informou que o desenho conceptual do tokamak usado no projeto STEP está em vias de ser concluído, prevendo-se depois mais quatro anos para o desenvolvimento dos planos de engenharia. A construção do futuro reator, que vai ficar situado no norte de Inglaterra, deverá arrancar em 2030 com vista a ficar concluída por volta de 2040 – e com uma meta capaz de mudar o mundo. “O objetivo [para o futuro reator] é produzir energia com ganho”, admitiu Ian Chapman.
“Produzir energia com ganho” é a meta que a comunidade de física nuclear e plasmas tem vindo a perseguir nas últimas décadas. E significa que a energia despendida a aquecer um plasma (um gás ionizado) que leva ao choque de átomos de deutério e trítio é inferior à energia produzida por esse processo.
O recorde anunciado esta quinta-feira diz apenas respeito à quantidade de energia obtida depois de um disparo de plasma que leva ao choque entre átomos de deutério e trítio. Os investigadores da infraestrutura europeia que operava em solo britânico não esconderam que, no ensaio de 3 de outubro, tiveram de gastar três vezes mais energia do que aquela que produziram no final.
Apesar de prestar-se à confusão devido à sonoridade, a fusão nuclear e a fissão nuclear (já usada em várias centrais nucleares no mundo) usam tecnologias diferentes.
Na fusão nuclear há um choque que leva átomos a fundir-se com colisões em temperaturas que superam as do sol. A fissão recorre a um choque de átomos e neutrões – mas o objetivo é partir os núcleos dos átomos e, assim, libertar energia. Geralmente, a fissão usa átomos de urânio e gera receios de incidente radioativo devido aos detritos e às reações mais difíceis de controlar. A fusão nuclear costuma ser apresentada como bem mais segura e menos poluente – mas só a Infraestrutura Nacional de Ignições dos EUA (NIF) logrou alcançar ganhos energéticos, e sempre a título experimental.
Sendo mais ou menos esperados pela comunidade, os resultados obtidos pelo JET não impedem a comparação com aqueles que foram obtidos pela NIF, no último ano, em vários ensaios que produzem mais energia do que aquela que despendem.
“O JET não tinha como objetivo obter mais energia do que a despendida, porque também é preciso uma certa dimensão para isso acontecer. Na Europa, a expectativa de alcançar esse ganho de energia está agora no ITER”, explica Bruno Gonçalves, presidente do Instituto Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN), que tem no currículo quatro anos passados em Culham, Oxfordshire, enquanto levava a cabo investigações no JET.
O ITER é um reator de grande dimensão em construção no sul de França com o objetivo de garantir experiências científicas de maior escala que permitam chegar ao ambicionado ganho energético. O projeto conta com a UE como principal acionista, mas tem também a participação de EUA, Rússia, China, Índia, Coreia do Sul e Japão.
Ian Chapman confirmou que o Reino Unido, possivelmente como resultado do Brexit, deixou de fazer parte da EuroATOM, que coordena as políticas da UE para o nuclear. Mas também lembrou que o Reino Unido se mantém como associado, “mas não como membro”, da EuroFusion, que tem em vista construir do primeiro reator de fusão nuclear DEMO que já permitirá replicar o que poderá vir a ser uma central nuclear de nova geração a operar quando fornece energia para o quotidiano.
Enquanto o ITER apenas pretende funcionar com um grande laboratório de ensaios, o DEMO já tem a viabilidade da tecnologia à escala industrial – mas não tem ainda um local designado e só deverá operar, na melhor das hipóteses, em 2040.
“Sempre achei que a Europa tinha uma estratégia pouco ambiciosa para dar resposta aos investimentos que estão a ser feitos no Japão, na China e nos EUA. Por outro lado, o ITER funciona como uma comunidade global e os conhecimentos ali desenvolvidos podem ser usados pelos membros do consórcio”, responde Orfeu Bertolami, professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
O ITER está em construção no sul de França e só deverá ficar operacional a meados da década de 2030
Na conferência desta quinta-feira, os representantes do UKAEA informaram que estão interessados em participar no ITER, mas essa aposta não os impede de avançar com o já referido reator de demonstração de capacidade industrial do programa STEP que vai ser instalado no norte de Inglaterra para produzir mais energia que aquela que consome para desencadear as diferentes reações.
Além de ter uma configuração diferente, o futuro reator também dá mostras de potencial concorrência com o DEMO por apontar a 2040 como a data de operacionalidade total.
Entre todos os representantes de UKAEA, JET e EuroFusion é transmitida a ideia de partilha de informação – e houve mesmo quem lembrasse que parte dos equipamentos do JET haverão de ser recondicionados e disponibilizados a outros reatores, inclusive ao ITER.
Além disso, há toda a ciência que está por fazer. “O JET não acabou. Este é apenas o fim das operações”, referiu Ambrogio Fasoli, líder do consórcio EuroFusion, que esteve presente no evento final do JET, mas é um dos principais promotores da construção do futuro DEMO.
Os disparos de reatores como o JET podem não demorar mais de cinco segundos, mas produzem grandes volumes de informação, que possivelmente ainda vão manter um grande número de cientistas ocupados nos próximos anos.
"Os disparos ocorrem dentro da máquina e nós obtemos os resultados através de sensores, que permitem produzir vários diagnósticos que confirmam ou não as teorias, ou até nos podem levar a propor alterações nos plasmas consoantes os objetivos”, descreve Francisco Salzedas, investigador da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e do IPFN que tem vindo a trabalhar com o JET desde 2001.
Sendo provavelmente o maior tokamak de confinamento magnético do mundo, o desmantelamento do JET não só marca o fim de uma era em que o Reino Unido participava de corpo e alma nos projetos científicos liderados pela UE, como pode também deixar um potencial hiato para os próximos tempos.
Bruno Gonçalves lembra que, enquanto o ITER não for construído, é o reator JT-60SA que está em vias de conclusão no Japão e resulta de uma parceria com a UE que deverá funcionar como principal referência, apesar de não poder operar com a mistura de trítio e deutério que serve de referência às fusões nucleares.
Sem o JET, não há na Europa reator com a mesma dimensão que seja capaz de usar deutério e trítio. Em contrapartida, há projetos privados em curso e a China e os EUA têm vindo a reforçar investimentos nesta área e já deverão ter reatores de fusão nuclear que operam com deutério e trítio bem antes de o ITER começar a operar.
Quem esperava que o responsável do ITER insuflasse de otimismo alguns dos presentes na conferência de despedida do JET também teve de rever as expectativas. Depois de vários adiamentos e revisões de datas de arranque, que chegaram a apontar para 2025, coube a Tim Luce, chefe de ciência do ITER, confirmar que as datas de estreia terão de ser trabalhadas com os acionistas, mas ainda admitiu que só meados da próxima década se espera a operacionalidade em ritmo cruzeiro.
Os reatores do JET e do ITER recorrem a uma tecnologia que é conhecida por confinamento magnético, que recorre a tokamaks que albergam plasma e choques de átomos, mas ainda não logrou o famoso ganho energético. A NIF que garantiu a linha da frente para o EUA ao alcançar o ganho energético, recorre a uma tecnologia conhecida por confinamento inercial que concentra vários lasers em pequenas porções de combustível para gerar as reações.
Apesar do ganho energético só ter sido obtido com confinamento inercial, o governo americano não deixou de investir no confinamento magnético através do projeto SPARC que deverá operar com deutério e trítio em breve.
Bruno Gonçalves admite que o fim da operacionalidade do JET deixa algum hiato em termos científicos, mas também lembra que o reator de Culham foi construído para operar apenas até ao início dos anos 90, tendo merecido várias melhorias e atualizações tecnológicas desde essa data. “A partir deste momento seria possível manter ganhos incrementais, mas faz sentido investir noutras áreas, como o desenvolvimento de materiais ou metodologias de produção de trítio. Os orçamentos são limitados e é natural que se tenham de fazer escolhas”, conclui o presidente do IPFN.