“O funeral da minha mãe foi oito dias depois de ela falecer”: atraso no MP e gabinete médico-legal provoca impasse “anómalo”
Quando alguém morre em casa, um magistrado do Ministério Público tem de decidir se o corpo é ou não autopsiado. Foi o que aconteceu à mãe de Luísa Jorge, só que a família teve de esperar vários dias para conhecer essa decisão. A situação é “anómala”, diz o presidente do Sindicato dos Magistrados do MP. O coordenador da comarca de Setúbal, onde ocorreu o óbito, aponta para a falta de funcionários nos tribunais e nos institutos de medicina legal, que dificulta a capacidade de resposta em tempo útil
A mãe de Luísa Jorge faleceu no feriado do dia 8 de dezembro, uma quarta-feira, em casa. Só oito dias depois é que foi feito o funeral, na quinta-feira da semana seguinte. O atraso deveu-se a um impasse anormal: a família teve de esperar vários dias pela decisão de um magistrado do Ministério Público (MP) de fazer ou não uma autópsia ao corpo.
Quando alguém morre em casa ou quando não é conhecida a causa da morte, um magistrado do MP tem de avaliar, junto de um médico-legista, se é preciso autopsiar ou não o corpo para despistar um eventual crime, explica ao Expresso o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Adão Carvalho. Naturalmente a autópsia pode ser dispensada, mas tem de existir essa avaliação, o que, neste caso, demorou vários dias.
Foi a agência funerária que tratou do processo, reunindo os relatórios médicos necessários e entrando em contacto com o tribunal, para avançar para o velório e funeral. Mas como conta Luísa Jorge, foi difícil encontrar um magistrado para tratar do caso. Porquê? “Não havia disponibilidade”, responde, com a agravante de o tribunal não estar aberto no feriado e no fim de semana.
Assim, só na terça-feira à tarde da semana seguinte é que foi conhecida a decisão: “um juiz pegou no processo e disse que não era precisa a autópsia”. A espera foi “desgastante” e “horrível”, lamenta Luísa. “O funeral da minha mãe foi oito dias depois de ela falecer”, diz angustiada.
Foto: Diogo Baptista via Getty Images
A situação é “anómala”, afirma o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Em regra, é “matéria de turno urgente” que costuma demorar no máximo dois dias, mal a comunicação entra no tribunal. Se não for no próprio dia, transita para o dia útil imediatamente a seguir, explica. E quem trata destes processos é “um magistrado de turno, nem sequer é um magistrado normal”.
Para Adão Carvalho, “até custa acreditar que isso possa ter acontecido”. No entanto, aconteceu e o caso não é isolado, tampouco se cinge só a Setúbal, garante Luísa Jorge. Diz ter ouvido testemunhos pessoalmente de várias pessoas a quem aconteceu o mesmo com familiares, em outras localidades, e “alguns estiveram até mais tempo à espera: 10 dias”.
Comarca de Setúbal aponta “dificuldades internas e falta de meios” no gabinete médico-legal
Para perceber o que poderá ter motivado o atraso no despacho da autópsia, o Expresso contactou o magistrado do Ministério Público, coordenador da comarca de Setúbal. João Palma reconhece que não é “normal” nem “desejável” demorar tanto tempo. Ainda assim, afirma que a situação recebeu a melhor atenção do MP, no sentido de esclarecer o que aconteceu.
“Se a resposta não foi mais rápida, foi por dificuldades internas e falta de meios no serviço do gabinete médico-legal de Setúbal”, justifica. O coordenador da comarca aponta ainda para a falta de funcionários quer nos tribunais, quer nos institutos de medicina legal, que dificulta a capacidade de resposta em tempo útil dos dois serviços.
Foto: Horacio Villalobos via Getty Images
Casos podem ser reportados
Como foi ultrapassada a licença de nojo (cinco dias para este grau de parentesco), a família de Luísa teve de meter um dia de férias para poder ir ao funeral da mãe. “Há coisas que não fazem sentido e não têm lógica nenhuma”. João Palma reconhece que “é insustentável que isto aconteça”.
O que é que as pessoas podem fazer nestes casos? Podem queixar-se a alguma entidade? O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público explica que pode ser feito “um requerimento ao imediato superior hierárquico”, ou seja, ao magistrado do MP coordenador da comarca. Como? Mandando um email, que está disponível na página da comarca, a explicar o que aconteceu e a justificar porque deve ser dada prioridade, em função da necessidade de se realizar o funeral com celeridade.
Além disso, e como em qualquer serviço público, a situação pode ser reportada no livro de reclamações do tribunal, dá ainda conta Adão Carvalho.