Foi revogada no Níger a lei que criminalizava o tráfico de migrantes. e permitia às autoridades intercetar os traficantes que os transportam através do deserto do país africano para a Líbia ou Argélia, de onde seguem geralmente para a Europa. A legislação estava em vigor há oito anos.
O anúncio foi feito esta segunda-feira à noite na rádio estatal pelo ministro da Justiça de transição, Alio Daouda, que aludiu a uma ordem nesse sentido assinada pelo Presidente de transição, general Abdourahamane Tiani, em 25 de novembro.
O país situado na região africana, conhecida como Sahel, uma faixa de terra que se estende entre o Oceano Atlântico ao Mar Vermelho, foi alvo de um golpe militar em julho. Este golpe resultou na retirada do Presidente Mohamed Bazoum, que tinha feito esforços conjuntos com a União Europeia (UE) para conter o fluxo de pessoas através do Mediterrâneo.
A comissária europeia para os Assuntos Internos, Ylva Johansson, disse lamentar “profundamente” a decisão. "Estou muito preocupada com a situação. Há um grande risco de que isto cause mais mortes (de migrantes) no deserto, esse é o ponto mais preocupante", continuou, acrescentando que "provavelmente" isto também levará mais migrantes a irem para a Líbia e "tentarem atravessar o Mediterrâneo" para a UE.
Com o general Abdourahmane Tchiani declarado o novo chefe de Estado, a medida, que remonta a 2015, foi, agora, revogada. A justificação é que a legislação “não tinha em conta os interesses do Níger e dos seus cidadãos”. O menor fluxo de migrantes, devido à imposição da lei, ditou a quebra da economia local num dos países mais pobres, onde 40% do orçamento depende de ajuda internacional. As condenações ao abrigo desta norma também vão ser anuladas.
Este anúncio é considerado um desafio à pressão internacional para repor o Presidente deposto. Na sequência do golpe, a UE suspendeu toda a cooperação militar, assim como a ajuda financeira, e também recusou reconhecer o general Tchiani como líder, uma decisão também tomada pelos Estados Unidos e França. “A União Europeia não reconhece e não reconhecerá as autoridades resultantes do golpe de Estado no Níger. A ordem constitucional deve ser restabelecida na íntegra e sem demora”, afirmou o alto-representante da UE para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, através de um comunicado.
Durante uma conferência da Comissão Europeia, em Bruxelas, esta terça-feira, a Presidente Ursula von der Leyen realçou a importância de uma “aliança global, com uma governação comum e objetivos partilhados” centrada na “prevenção, na resposta e nas alternativas legais às rotas de contrabando mortais”. A conferência servia, precisamente, para discutir a cooperação internacional contra o tráfico de migrantes.
Antes da lei, mais de 4.000 migrantes eram traficados semanalmente
Esta lei, adotada no âmbito da então estratégia nacional de luta contra a migração irregular, foi iniciada na sequência da cimeira de Valeta (Malta), em novembro de 2015. O Níger tinha se comprometido a trabalhar em estreita colaboração com a UE para travar o trânsito de migrantes irregulares através do seu território para a Europa, via Líbia e Argélia.
“A adoção desta lei visa essencialmente proteger as fronteiras do nosso país”, tinha assegurado o ministro da justiça, Marou Amadou, à agência Reuters. Enfatizava também que as pessoas traficadas eram vítimas de abusos dos direitos humanos e realçava que era “indispensável” que todos os que viajassem no país fossem portadores dos seus documentos de identidade.
Antes desta legislação, existiam mais de 6.000 traficantes na região de Agadez, segundo a Organização Internacional para a Migração (OIM) das Nações Unidas. A região no norte de Níger, conhecida como “porta de entrada do deserto”, era o ponto inicial das rotas de migração.
Cerca de 4.000 migrantes eram transportados, semanalmente, através do deserto do Saara para a Líbia. Muitos dos migrantes que chegavam até à Líbia eram vendidos a sequestradores que tentavam extorquir as famílias das vítimas. Caso não obtivessem o dinheiro, torturavam-nas, mantinham-nas cativas por meses ou soltavam-nas no deserto do Saara.
A eurodeputada Ylva Johansson recordou que a aprovação da lei no Níger, em 2015, conduziu a uma "queda significativa das chegadas irregulares e do número de mortes no deserto".
“As 212 mortes que registámos no Saara no ano passado [2022] são apenas a ponta do icebergue. As mortes ocorridas durante a migração trans-sahariana permanecem em grande parte invisíveis, uma vez que documentar as mortes numa área tão vasta e inóspita como o Sahara é, por natureza, um enorme desafio”, afirmou ao jornal The Guardian, Julia Black, do projeto Missing Migrants, que documenta migrantes desaparecidos. Por ter uma extensão quatro vezes maior do que o Mediterrâneo, muitos dos migrantes que faleceram durante a travessia do deserto poderão nunca ser encontrados.
Com a legislação em vigor, as rotas de migração alteraram-se de forma a evitar as autoridades. Mais perigosas, estas rotas passavam por zonas assoladas por grupos armadas e repletas de minas terrestres. Além deste risco, os traficantes também passaram a cobrar, pelo menos, duas vezes mais pelo seu serviço.
Agora traficantes podem voltar a ganhar cerca de 5.455 euros semanais com as rotas de contrabando humano
“Se a lei fosse flexibilizada, eu voltaria a traficar pessoas, isso é certo. Ganhei tanto quanto 6.000 dólares [aproximadamente 5.455 euros] por semana, muito mais dinheiro do que eu consigo fazer agora”, tinha afirmado à BBC, em 2019, o traficante Bachir Amma. Caso fossem apanhados, os infratores podiam ir para “muito tempo” para a prisão e os seus veículos eram confiscados. Receia-se agora que os traficantes voltem a operar.
A revogação desta lei pode conduzir a um aumento nas chegadas irregulares à Europa, em especial através do Mediterrâneo, onde muitos perdem a vida. Mais de 90.000 migrantes chegaram de África nos primeiros seis meses de 2023, de acordo com dados da OIM. Se o ritmo se mantiver, este ano pode superar os valores registados em 2017, quando entraram irregularmente mais de 180.000 pessoas.
Número de chegadas irregulares de migrantes à Europa
Segundo a Comissão Europeia, 90% dos migrantes que entram irregularmente na Europa, fazem-no através de traficantes. Em 2019, as receitas geradas por este tipo de tráfico, através de rotas marítimas, superaram os 200 milhões de euros.
“O modo de atuação destes contrabandistas está em constante evolução. Mas a nossa legislação tem mais de vinte anos e necessita de uma atualização urgente. Por isso, precisamos de nova legislação e de uma nova estrutura de governação. Precisamos de uma aplicação mais forte da lei, de ações judiciais e de um papel mais proeminente para as nossas agências - Europol, Eurojust e Frontex”, afirmou a Presidente da Comissão Europeia.
O sexo feminino é o mais visado pelo tráfico no Níger, em cerca de 69%, segundo um relatório de 2021 da OIM. A maioria estava na faixa etária dos 20 anos, mas há vítimas entre os quatro meses e os 66 anos. As crianças representavam 37% das pessoas traficadas.
Texto de Eunice Parreira editado por Mafalda Ganhão