Coronavírus

Consenso no Infarmed: incidência vai cair nos próximos dois meses e há condições para aligeirar medidas. Especialista propõe fim de limitações em centros comerciais e discotecas

Foto: TIAGO PETINGA/LUSA
Foto: TIAGO PETINGA/LUSA

Governo ouviu os peritos para reunir informação. “O vírus está objetivamente endémico”, disse o epidemiologista Henrique Barros, enquanto Baltazar Nunes, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, sublinhou que “a mortalidade está ao nível de uma época de inverno de menor impacto”

“Estamos numa fase decrescente desta quinta onda pandémica relacionada com a variante Ómicron”. Esta foi a primeira ideia apresentada por Pedro Pinto Leite, da Direção-Geral da Saúde (DGS), na reunião do Infarmed desta quarta-feira, entre políticos e especialistas, que teve como pano de fundo um eventual alívio das medidas.

No final, Raquel Duarte, especialista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, foi bastante clara nas recomendações para a gestão futura da covid-19: há condições para terminar com as limitações de acesso a centros comerciais, bares ou discotecas, para reduzir a testagem a uma monitorização “do que se passa na população” e o uso da máscara e para limitar a exigência do certificado digital a “contexto de saúde ocupacional”.

Marcelo Rebelo de Sousa quis fazer uma nota final: agradeceu a todos os especialistas que contribuíram ao longo destes quase dois anos para aconselhar o Governo na tomada de decisões. “É um momento simbólico”, disse o Presidente da República, agradecendo ainda à ministra da Saúde Marta Temido e a Graça Freitas, diretora-geral da Saúde.

A decisão fica agora do lado do Conselho de Ministros, que se realiza esta quinta-feira. Segue-se um resumo das cinco intervenções nesta sessão.

Pandemia em tendência decrescente

Pedro Pinto Leite mostra que neste momento o país está com uma média de 22 mil casos por semana. “Todos os grupos etários apresentam uma tendência decrescente”, acrescentou, sublinhando que durante a atual onda – a maior desde o início da pandemia – tem sido possível “manter a incidência baixa entre os grupos etários mais velhos”, associados a doença com maior gravidade.

Pinto Leite aponta ainda que a taxa de positividade está a “decrescer”, apesar de estar acima da média do ECDC, tendo sido feitos mais de 996 mil testes à covid-19 durante a última semana.

O terceiro aspeto sublinhado pelo perito da DGS é a “proteção conferida pela vacinação”. Neste momento, 91% dos cidadãos têm o esquema vacinal completo contra a covid-19, 96% têm pelo menos uma dose, e 55% dos habitantes com mais de 55 anos já receberam a dose de reforço.

Os números refletem isto: por cada 100 pessoas com mais de 80 anos, 23 acabavam por ser internadas com covid-19 quando não tinham o esquema vacinal completo. Depois da vacina, este número baixa para dez internamentos por cada 100 habitantes; e com a dose de reforço este indicador desce ainda mais, com cerca de três pessoas internadas por 100 habitantes. “É uma redução substancial do risco e reforça a importância da vacinação e a confiança que temos nela para diminuir a gravidade da doença”, diz Pinto Leite.

Sobre o impacto da covid-19 nos sistemas de saúde, o perito sublinha a redução do número de casos internados em unidades de cuidados intensivos. “Houve uma estabilização do número total de casos com covid-19 internados nos hospitais”, disse. “Estamos muito longe do que já estivemos no inverno passado”, acrescentou.

Esta semana, o indicador da mortalidade estabilizou pela primeira vez, apesar de ainda ser superior ao limiar do ECDC (20): há 63 óbitos a 14 dias por milhão de habitantes neste momento. A 7 dias, a tendência já é decrescente – e é expectável que isso vá continuar.

“Em 2 meses, podemos atingir uma taxa de incidência muito baixa, de 60 casos por 100 mil habitantes”

Ainda na “caracterização da situação epidemiológica”, fala agora Baltazar Nunes, para começar por dizer que o atual R(t) “é muito mais baixo” do que o do fim do ano. O especialista do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge centra a intervenção nos cenários observados no fim do ano e dos que se preveem no futuro. “Tivemos um número de reprodução efetiva [de casos] dos mais elevados no Natal, e neste momento temos estado em queda. A esta velocidade, em 2 meses podemos atingir uma taxa de incidência muito baixa, de cerca de 60 casos por 100 mil habitantes.”

Os gráficos de Baltazar Nunes mostram uma pandemia a desacelerar. Primeiro, o responsável do INSA comparou as previsões dos especialistas para a ocupação de camas em enfermaria e em unidades de cuidados intensivos (UCI) para mostrar que a evolução se manteve “de acordo” com o cenário previsto de perda de proteção”. Em UCI o que se observou está “abaixo do melhor cenário”.

Mais um gráfico e mais uma informação para “refletir no futuro”. Baltazar Nunes mostra os números da mortalidade desde 2007 e conclui que, atualmente, “a mortalidade está ao nível de uma época de inverno de menor impacto”, ao contrário de outras. “No passado, houve períodos de excesso de mortalidade superiores aos atuais.” Porquê? Para o especialista, as medidas de proteção trazem pistas para evitar novos picos de mortalidade, com ou sem pandemia.

Vigilância deverá ter dois níveis: ao vírus e à doença

Ana Paula Rodrigues, especialista em saúde pública e coordenadora do primeiro Inquérito Serológico Nacional covid-19 do Instituto Ricardo Jorge, propõe um novo modelo de vigilância para a pandemia assente no vírus e na doença. A estratégia deverá avançar num cenário sem emergência de saúde pública, previsto a breve prazo.

Segundo a proposta, é preciso manter a vigilância populacional do vírus pandémico para identificar ameaças, porque a sazonalidade prevista pode, ainda assim, trazer novas variantes, e as infeções sintomáticas. Os especialistas querem estar atentos aos padrões e aos fatores de risco para o crescente conhecimento da covid. Em causa está, desde logo, o risco de doença grave e de morte associado à redução da imunidade.

“A redução das medidas de proteção passa a dispensar a notificação de todos os casos e apenas os casos de doença. É para os quadros clínicos que a atenção deve ser direcionada”, afirmou. Na prática, o sistema de vigilância da gripe, com uma rede de médicos sentinela a partir das unidades de saúde, deverá ser alargado ao coronavírus pandémico e deverá incluir também o vírus sincicial respiratório.

Ana Paula Rodrigues sublinha que o modelo de vigilância a implementar não é novidade, resultando dos dois últimos anos de experiência. Vai implicar alterações normativas e a constituição de equipas e será para manter. O maior conhecimento das infeções respiratórias deverá ser constante para a deteção precoce de alterações relevantes e passa ainda por outros mecanismos, por exemplo pela análise das águas residuais.

Da emergência à endemia: “As pandemias não duram eternamente: mudam”

“É uma oportunidade para um novo olhar de uma história que estamos a viver. Quando emerge um novo agente de infeção e doença, bastam dois casos para haver uma epidemia”, começa por dizer o epidemiologista Henrique Barros, no segmento da reunião sobre a fase endémica da covid-19.

“As pandemias não duram eternamente: mudam. O agente pode desaparecer, como o SARS-COV-1, ou pode passar a ficar presente nas populações em intensidades variadas, e reiniciar um novo ciclo de infeção e doença. É isso que define a situação de hoje”, disse o perito.

A ideia principal de Henrique Barros é esta: os últimos dois anos de combate à pandemia deram frutos. As medidas de restrições impostas a nível político, as ações adotadas pelos cidadãos a nível pessoal e sobretudo as vacinas conseguiram “mudar a relação entre o número de casos positivos e o impacto da infeção”, garante o perito. “Há muito que se pensa a resposta em função da gravidade da doença e não dos casos”, acrescentou Barros, depois de ter assinalado a progressão positiva das respostas governamentais que foram aplicadas, comparando-as com as de outros países europeus.
“O vírus está objetivamente endémico”, sublinhou.

“Podemos dizer que 30% da população contactou com o vírus”, aponta Henrique Barros, reforçando no entanto a importância dos testes e da vigilância das águas residuais para aferir a presença do vírus. No fundo, o “caminho de saída” desta crise de saúde pública é este: “Agir tão depressa quanto possível mas tão devagar quanto necessário”, uma frase proferida em abril de 2020, na ressaca do “primeiro embate” com o vírus, proferida por Alain Berset, membro do Conselho Federal da Suíça e um dos responsáveis pela gestão da pandemia no país.

Há condições para desagravar medidas, diz Raquel Duarte

“Estamos em condições de passar a menos medidas restritivas”, diz Raquel Duarte, especialista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, que apresenta recomendações para a gestão da covid-19.

No gráfico da especialista aparecem dois níveis para essa redução, o 1 e o 0. E a equipa responsável pelas recomendações, avança Raquel Duarte, considera que “estamos no momento ideal para passar a medidas do nível 1”. Na prática, significa que a testagem seria mantida, “para monitorizar o que se passa na população”, mas acabariam quaisquer limitações de acesso a centros comerciais, bares ou discotecas.

O certificado digital seria usado “sobretudo em contexto de saúde ocupacional” e a máscara passaria a ser obrigatória apenas em locais interiores públicos, serviços de saúde, transportes públicos, espaços exteriores com grande densidade e para profissionais que lidem com populações vulneráveis. No trabalho, deixaria de haver qualquer limitação.

Raquel Duarte lembra que essa passagem ao nível 1 exige uma avaliação de 15 em 15 dias, para perceber os efeitos que tem na mortalidade e hospitalização. Se tudo correr como previsto, o país pode caminhar para o nível 0, em que se mantém a vigilância, mas “sem outras limitações”.

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