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Covid-19. Testes a fezes podem ser mais eficazes na deteção do vírus em crianças? Nem por isso

Covid-19. Testes a fezes podem ser mais eficazes na deteção do vírus em crianças? Nem por isso
Allan Carvalho/NurPhoto/Getty Images

Um grupo de investigadores de Hong Kong concluiu que a quantidade de vírus existente nas fezes das crianças infetadas com o vírus da covid-19 é maior do que nos adultos e que persiste durante mais tempo. Mais: deram a entender que se devia optar por testes fecais, por serem mais “eficazes”, mas não será bem assim, pelo menos não para todos os especialistas

Covid-19. Testes a fezes podem ser mais eficazes na deteção do vírus em crianças? Nem por isso

Helena Bento

Jornalista

O tema não é novo, a própria Direção-Geral da Saúde falou sobre o tema em março, quando se deu o pico da pandemia em Portugal, mas um estudo realizado por investigadores de Hong Kong voltou a trazer o tema à discussão.

Segundo esses investigadores, fazer testes às fezes para tentar detetar a presença do vírus da covid-19 poderá ser mais eficaz em crianças do que os testes respiratórios que têm sido feitos até agora. E isto por uma razão aparentemente simples: é que a carga viral nas suas fezes é superior à dos adultos.

A explicação consta de um comunicado emitido esta segunda-feira e citado pela agência Reuters. Nele, a equipa da Universidade Chinesa de Hong Kong explica que o vírus é detetável em amostras de fezes mesmo depois de já não o ser nas vias respiratórias. Assim, e segundo os investigadores, analisar amostras fecais permitirá identificar melhor os casos assintomáticos, em particular crianças e outras pessoas que, por diferentes razões, seja difícil testar de outra maneira.

Confrontado com os resultados do estudo, Paulo Paixão, virologista e professor na Faculdade de Ciências Médicas (Lisboa), começa por explicar que a “excreção do vírus nas fezes já foi demonstrada em mais do que um trabalho” e que “normalmente até se prolonga mais do que a excreção nas vias respiratórias”. Mas isso não é assim tão significativo quanto isso, porque “a transmissibilidade pelas fezes, embora seja teoricamente possível, é muito baixa”. “Num país com um saneamento básico normal, em que não há contaminação pelos esgotos, a transmissibilidade há de ser muito baixa, se é que é alguma.”

E o especialista reforça: “Se tivermos detecção do vírus nas fezes e não nas vias aéreas, a transmissibilidade dessa criança é muito baixa.” E, sendo assim, “não se ganha assim tanto em fazer testes às fezes”. Paulo Paixão nota ainda que mesmo os testes que têm sido feitos até ao momento, e que procuram detetar o vírus nas vias respiratórias, têm algumas fragilidades. “Muitas vezes o vírus está presente nessas vias mas já não é transmissível. Há cada vez mais evidência de que, a partir das duas semanas, já não é viável para transmissão, portanto nas fezes, a partir desse período, ainda há-de ser menos.” O virologista teme mesmo que o estudo “até lance confusão sobre a informação que temos até agora”.

A opinião de Miguel Araújo Abreu, infeciologista no Hospital de Santo António, no Porto, é a mesma. “São várias as barreira físicas que impedem que o vírus que é detetado nas fezes seja tão transmissível quanto o que é detetado nas vias respiratórias. A transmissibilidade de uma doença fecal-oral é completamente diferente da gripe, por exemplo”, assinala, ilustrando com uma situação prática: “No início, nos primeiros doentes, colhíamos amostras de sangue, secreções respiratórias, fezes e urina, mas agora não.”

Ainda o estudo...

Para o estudo dos investigadores de Hong Kong, que foi publicado na revista científica “GUT", da Sociedade Britânica de Gastroenterologia, foram realizadas análises às fezes de dois mil bebés e crianças sem sintomas e a outras à chegada ao aeroporto de Hong Kong. A colheita começou em março e, a 31 de agosto, confirmou-se que seis das crianças estavam infetadas com o vírus.

Segundo Paul Chan, presidente do Departamento de Microbiologia da referida universidade, a carga viral presente nas amostras de crianças era "muitas vezes superior" à das amostras fecais de adultos. Mais: era “equivalente” às amostras das vias respiratórias destes.

Ainda de acordo com o responsável, percebeu-se também que a infeção viral persiste durante mais tempo no intestino das crianças, em comparação com o que acontece nos adultos. "É mais prático, seguro e não-invasivo recolher amostras de fezes na população pediátrica do que fazer testes respiratórios". Além disso, acrescentou, "os resultados são mais rigorosos".

Também esta conclusão não é uma novidade. Quanto ao facto de o vírus se acumular mais no tubo digestivo das crianças em comparação com os adultos, Miguel Araújo Abreu explica: “Todos os vírus precisam de uma porta de entrada para entrar nas células, que neste caso é uma proteína específica. Essa mesma proteína, no caso das crianças, tem mais expressão, ou está mais presente, no tubo digestivo, daí acumular-se mais nessa zona.” Isso explica, acrescenta, por que razão as manifestações do vírus nas crianças são diferentes dos adultos, “havendo maior tendência para quadros gastrointestinais, dor abdominal e diarreia”.

Paulo Paixão não tem assim tantas certezas quanto a isso, mas explica “que o vírus da covid-19 é praticamente o único, de todos os vírus respiratórios com invólucro [estrutura na parte exterior do vírus, e que os vírus mais comuns, como a da gripe, têm] que consegue tolerar a acidez gástrica e multiplicar-se no estômago”. “Todos os outros não aguentam essa passagem pelo estômago”, acrescenta.

E as outras conclusões dos investigadores de Hong Kong

Os investigadores também analisaram amostras fecais de 15 pessoas infetadas com o vírus em Hong Kong, entre fevereiro e abril, e detetaram infeções víricas ativas nos seus intestinos, mesmo na ausência de sintomas gastrointestinais. Em três deles, aliás, essas mesmas infecções persistiram depois de os testes respiratórios darem negativo.

Segundo os investigadores, isso não só corrobora como reforça a hipótese, adiantada nos últimos meses, de haver, de facto, transmissão do vírus por via fecal. Além disso, as análises às amostras fecais de mais do que um paciente deram positivo, enquanto os testes respiratórios deram negativo, o que sugere, segundo a equipa, que aquele tipo de testes pode ser “mais eficaz” em determinados grupos de pessoas.

No final de março, a DGS recomendou um reforço da higiene após a saída do isolamento, devido ao risco de o vírus sair pelas fezes de doentes em fase de convalescença, em particular nas crianças. “Devido à crescente evidência de excreção do vírus através das fezes de doentes em fase de convalescença, particularmente nas crianças, recomenda-se um reforço da higiene pessoal após libertação do isolamento”, aconselhou a entidade, numa orientação publicada no site.

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