A estratégia do governo brasileiro de não realizar testes para covid-19 nos doentes com síndrome respiratória ocorridas em ambiente hospitalar está a lançar dúvidas sobre o real número de mortes na pandemia. O último boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde, de 25 de maio, o total de óbitos atribuídos à covid-19 era metade do que se regista atualmente, mas, à mesma data,12.735 mortes eram atribuídas à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) de origem não especificada.
O alerta vem de Gilberto Calil, historiador e professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Num artigo a que o Expresso teve acesso e em que explica a situação, o investigador sublinha que, antes da pandemia, "havia uma média de 40 mortes por SRAG, e portanto seriam esperadas em torno de 840 até o final da vigésima primeira semana, restando, portanto, 11.895 mortes excedentes. Isto significa um excedente de 656 mortes para cada mil mortes confirmadas por covid-19".
Se vistos no âmbito dos estados, a discrepância de números parece ainda mais evidente. "No caso do Paraná, por exemplo, a 3 de junho, o número de óbitos confirmados por covid-19 era de 193, e registravam-se na mesma altura, 1.061 casos por SRAG não especificada, o que significa 930 mortes acima do esperado, ou 4.8 mortes excedentes para cada morte registrada", explica Gilberto Calil.
As dúvidas vão, contudo, para lá dos próprios números, começando mesmo na própria forma de os divulgar. "O horário de divulgação dos dados nacionais foi modificado diversas vezes: era inicialmente às 15H, passou para as 19H, com atrasos e oscilações significativas, e na última semana, justamente nos dias com os piores números, foi divulgado depois das 22H, 'para que não fosse divulgado no Jornal Nacional' da Rede Globo, até que finalmente se oficializou a mudança de horário para as 22H", conta Calil.
"Desde o registro dos primeiros casos do Covid-19 no Brasil, no final de fevereiro, trava-se uma intensa guerra de informações. Por algum tempo, no âmbito do próprio governo federal coexistiam em conflito dois discursos opostos. Até 16 de abril, data da demissão do Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, ainda que de forma limitada, o Ministério da Saúde alertava para a gravidade da pandemia e utilizava a estrutura do Sistema Único de Saúde para produzir informações relevantes sobre a situação da pandemia no país, publicadas em constantes boletins epidemiológicos. Ao mesmo tempo, outros setores do governo minimizavam a gravidade da pandemia e o próprio presidente Jair Bolsonaro atacava as medidas de isolamento social e fazia aparições públicas em meio a aglomerações e sem uso de máscara", explica Gilberto Calil no artigo a que o Expresso teve acesso.
Para contornar os obstáculos criados por Jair Bolsonaro à transparência da informação sobre a pandemia, várias entidades se organizaram para, apesar da decisão do Presidente da República, manter a divulgação de dados. Órgãos de comunicação comprometeram-se a continuar a revelar os números e até organizações como o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, que reúne os gestores dos 26 estados e do Distrito Federal, inauguraram no último domingo, um "portal paralelo" com dados sobre a pandemia do novo coronavírus no Brasil. E, entretanto, na passada segunda-feira, o juiz do supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes determinou que o Ministério da Saúde retomasse a divulgação dos dados acumulados de covid-19.
Testes em falta
O historiador que se tem dedicado a estudar os números de óbitos durante a pandemia afirma que "um eixo central da política de omissão de informações era a restrição de testagens, que hoje sabe-se que foi uma das razões do conflito que levou à demissão de Mandetta. Naquele momento, o país tinha em torno de cinco testes feitos por resultado positivo, restringindo já a testagem aos pacientes hospitalizados e em estado grave". Explica ainda que, com a demissão de Mandetta, "os secretários com perfil técnicos são substituídos por militares", o novo ministro da Saúde "é colocado no ostracismo até se demitir em 15 de maio e ser substituído por um militar, que já então parecia controlar o ministério, e o número de testes se reduz ainda mais".
Gilberto Calil alerta ainda que "a inconsistência é tamanha que os dados oficiais que constam no último boletim epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde, registam que o número médio de testes por dia, que era 6.753 em abril, tendo aumentado apenas 12.8% até 20 de maio". No entanto, sublinha, "o número de novos casos por dia nesta data já passava de 20.000, contra 1.163 no primeiro dia de abril ". No total, o Brasil regista menos de um milhão de testes, apresentando uma das piores relações do mundo, com 4.706 testes por milhão de habitantes, ocupando a posição 130 entre 225 países, embora em simultâneo seja já o segundo em número de casos, afirma o investigador. Oficialmente, o Brasil tinha na terça-feira mais de 37 mil mortos.