Com doença pulmonar obstrutiva, o pai era considerado um doente de alto risco. Cada vez mais cansado e apático, embora não apresentasse temperatura alta ou tosse persistente, tudo indicava que já tivesse sido infetado. Foi levado para o hospital, mas o somatório dos pulmões debilitados e da idade desaconselharam a ligação a um ventilador. Sem outra alternativa, acabou por regressar a casa. Tudo foi preparado para o receber e para minimizar o desconforto respiratório, e o idoso foi ligado à sua máquina de oxigenação, antes usada apenas enquanto dormia. Lentamente, com o apoio da família, depois de muitos altos e baixos, Suryakant conseguiu estabilizar e melhorar a sua condição de saúde.
Uma história real, com um fim até agora positivo e com um elemento que interessa: as consequências da falta de oxigenação do organismo e a sua relação com fatores de risco para o agravamento da covid-19. Muito nesta pandemia é completamente novo e surpreendente e apanhou também de surpresa uma equipa de investigadores da Nova Medical School, em Lisboa: quando a pandemia surgiu, tinham tudo pronto para iniciar um estudo clínico sobre a apneia obstrutiva do sono.
Puzzle sem as peças todas
De acordo com um estudo realizado em 2014, a prevalência de apneia obstrutiva do sono diagnosticada em portugueses com 25 ou mais anos foi de 0,89%. Estima-se que a doença esteja subdiagnosticada, porque no resto do mundo a prevalência nos adultos varia entre 4 e 15%. A prevalência é maior nos homens (1,47%) e na população entre os 65 e os 74 anos (2,35%). A hipertensão é uma das comorbilidades mais comuns nas pessoas com apneia obstrutiva do sono: 75,9% das pessoas com apneia obstrutiva do sono têm hipertensão.
O que o grupo de investigação da Nova demonstrou pela primeira vez em animais é que o processo que o ressonar - considerado uma fase inicial da apneia obstrutiva do sono - provoca é semelhante àquele provocado pela poluição e também a poluição está associada à hipertensão arterial. Ou seja, como peças de um intrincado puzzle, tudo parece estar interligado. E agora, a esta soma de resultado complexo veio juntar-se a covid-19.
Vamos então por partes. As doenças cardiovasculares, onde se destacam as doenças coronárias e o acidente vascular cerebral (AVC,) representam a principal causa de mortalidade e morbilidade mundial. Portugal não foge a esta regra. A hipertensão arterial é também considerada um fator de risco determinante no desenvolvimento destas doenças cardiovasculares, razão porque é essencial controlar esta patologia. Em Portugal, a prevalência da hipertensão arterial é de cerca de 40% e muitos destes doentes não respondem aos fármacos anti-hipertensivos disponíveis no mercado.
O problema é que as causas para o aparecimento da hipertensão arterial são variadas, podendo estar relacionadas com hábitos de vida (consumo de sal em excesso, obesidade, consumo de tabaco e sedentarismo), com fatores genéticos e ainda com a apneia do sono e a exposição à poluição. As peças do puzzle parecem começar a juntar-se, mas o desenho final ainda está longe do fim. Foi por isso que o grupo de investigação do Laboratório de Farmacologia Translacional, no Centro de Estudo de Doenças Crónicas da Nova Medical School (Universidade Nova de Lisboa) decidiu avançar numa destas atuais linhas de investigação. Ou seja, que mecanismos da hipertensão arterial estão relacionados com a Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS).
Esta síndrome é um factor de risco para o desenvolvimento de hipertensão arterial, uma causa já identificada cientificamente para a hipertensão arterial mais resistente, o que motivou o grupo da Nova Medical School a tentar perceber melhor como a SAOS pode levar ao desenvolvimento da hipertensão, preparando o caminho para a descoberta de uma nova abordagem terapêutica.
O grupo, liderado por Emília Monteiro, acabou de publicar um estudo na revista "Pharmacological Research," em que explica que uma molécula, chamada AHR (receptor de aril hidrocarboneto) é responsável pela resposta do metabolismo a certos poluentes ambientais e que esta molécula estava aumentada em ratos hipertensos por exposição à SAOS. Os investigadores provaram ainda que, quando utilizaram um composto para bloquear a molécula, foi possível tratar a hipertensão. E a definição do puzzle pareceu aumentar.
"Apesar de estes resultados terem sido obtidos num modelo animal, achamos que pode representar um passo importante sobre o conhecimento de novos mecanismos de hipertensão arterial relacionados com a apneia obstrutiva do sono, abrindo a porta a novos fármacos para tratar os doentes hipertensos. Por isso, pretendemos, a curto prazo, estudar se esta molécula também se encontra aumentada em doentes com doença obstrutiva do sono e com hipertensão arterial", explicou ao Expresso Emília Monteiro.
Assim, tão logo a pandemia permita e os hospitais regressem à atividade normal, o grupo, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, pretende iniciar em estudo clínico envolvendo 930 pessoas. A investigação vai contar com colaboração do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Centro Hospitalar Lisboa Central, Hospital Fernando Fonseca e Hospital da Luz. E, desta forma, pode ser que o desenho final do puzzle fique mais nítido. Porque, explica a investigadora, a molécula que parece também representar um potencial ponto em comum entre a poluição, a apneia obstrutiva do sono e os mecanismos de hipertensão arterial não será indiferente à exposição à poluição.
"Apesar disso, atualmente não existe qualquer teste clínico para avaliar a vulnerabilidade das pessoas à poluição, em termos de efeitos na pressão arterial. A via desta molécula poderia estar, então, implicada nesta maior ou menor susceptibilidade à hipertensão arterial causada pela poluição, contribuindo para uma medicina personalizada", explica Emília Monteiro.
Falta a peça da covid-19
A apneia do sono, causadora de uma hipoxia crónica intermitente - ou seja, a falta de ar por alguns segundos que ocorre de forma recorrente enquanto um destes doentes dorme - aumenta o número de proteínas onde se liga o novo coronavírus para entrar nas células, a enzima ACE2. O que se tem percebido é que os medicamentos para a hipertensão usados nestes doentes, além de não serem sempre eficazes para reduzir a pressão arterial, ainda aumentam mais estas proteínas, podendo prolongar o tempo para os infectados se tornarem negativos.
Mas, afinal, como a falta de oxigénio pode estar relacionada com esta tempestade do organismo? "Aparentemente, a reação do corpo à falta momentânea de oxigénio, várias vezes durante a noite, em quem sofre de apneia obstrutiva do sono, é semelhante à causada ao processo infecioso gerado pela covid-19. E a hipertensão arterial tem se revelado um fator de agravamento desta doença nas pessoas infetadas pelo novo coronavírus. Este vírus mata porque provoca um inflamação generalizada no organismo", explica Emília Monteiro.
Como, neste tempo de incertezas, alguém pode desconfiar se sofre de apneia obstrutiva do sono? Acordar recorrentemente cansado, sem razão para tal, sofrer de sonolência diurna, ressonar e apresentar hipertensão sem razões específicas são sinais de alerta. Nas pessoas com estes sintomas, a obesidade é ainda um fator a ter também em conta. Assim como a flacidez muscular.
E qual a relação com a história com fim positivo no início deste artigo? Bem, a máquina de oxigenação noturna terá funcionado como uma espécie de ventilador, permitindo a estabilização de Suryakant "Suri" Nathwani. Mais um sinal de que ainda faltam peças neste puzzle, que só ficará completo com mais investigação. Um trabalho a que o grupo português pretende acrescentar mais um elemento.