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Linha de apoio emocional e prevenção do suicídio: “Estamos a receber o dobro das chamadas que recebíamos”

Linha de apoio emocional e prevenção do suicídio: “Estamos a receber o dobro das chamadas que recebíamos”
TIMOTHY A. CLARY/Getty Images
O número de pessoas que telefonam para a SOS Voz Amiga, a mais antiga linha telefónica de prevenção do suicídio em Portugal, aumentou desde o início da pandemia de covid-19. Ligam pelas mesmas razões que o faziam antes, mas há qualquer coisa de diferente nelas. Estão “mais ansiosas”, algumas delas já perderam o emprego e outras receiam vir a perdê-lo
Linha de apoio emocional e prevenção do suicídio: “Estamos a receber o dobro das chamadas que recebíamos”

Helena Bento

Jornalista

O número de chamadas tem aumentado desde o início da pandemia, avisou Francisco Paulino, presidente da SOS Voz Amiga, num e-mail enviado há dias. A mensagem dizia exatamente: “Tem havido um acréscimo significativo de chamadas nos últimos dias”. Só assim, mas não havia como não tentar perceber melhor. E o que havia para perceber, entre muitas outras coisas, é que se “até ao final de fevereiro” a mais antiga linha telefónica de prevenção do suicídio em Portugal recebia “em média 600 chamadas por mês, no último mês foram 800”, mais aliás, “quase o dobro”, se contabilizadas as que foram efetuadas mas às quais não conseguiram dar resposta. As pessoas continuam a ligar “pelas razões que ligavam antes”, sobretudo a solidão, até a “solidão em família”, mas há agora um “denominador comum” das chamadas: a ansiedade. “Está tudo embrulhado nisso”. Além disso, explica o presidente em entrevista ao Expresso, “verifica-se já um acréscimo no número de chamadas por problemas económicos”, de pessoas que perderam o emprego ou receiam vir a perdê-lo, “à semelhança do que aconteceu durante a crise económica de 2008”.

Disse-me por e-mail que tinha havido um aumento no número de chamadas. Que acréscimo foi esse?
Antes do início da pandemia, e até ao final de fevereiro, recebíamos em média 600 chamadas por mês, mas no último mês foram 800. Sabemos, no entanto, que têm sido feitas muitas mais, mais do dobro, a que infelizmente não conseguimos dar resposta. Eventualmente algumas dessas pessoas voltaram a ligar e falaram connosco, mas mesmo assim é um aumento brutal em comparação com períodos anteriores.

Quais são as principais queixas das pessoas que telefonam?
As pessoas telefonam pelas mesmas razões que telefonavam antes. Telefonam sobretudo porque se sentem sozinhas, por causa da solidão, ou porque têm alguma doença do foro psíquico, sendo particularmente prevalecente a depressão. O que surpreende é mesmo a quantidade de chamadas e a ansiedade acrescida que se nota nas pessoas. A ansiedade e a insegurança. Frases como ‘não faço ideia do que vai acontecer’ e ‘não sei até quando terei de estar em casa’ e ‘não sei se vou voltar ao emprego’ são muito frequentes. É como se a ansiedade fosse, de facto, o denominador comum de todas as chamadas que agora recebemos. E que se manifesta independentemente do motivo principal pelo qual a pessoa ligou. Há algumas pessoas que nos ligam há anos, a que nós designamos ‘os habituais’, e é nesses que isto se nota mais. A queixa dessas pessoas normalmente é sempre a mesma, há uma determinada história e de cada vez que ligam a história repete-se, com quase nenhuma alteração. Mas agora introduziu-se esta nova situação, e a cada passo notamos que aquela pessoa está cada vez mais ansiosa, mais nervosa, com mais medo. Além disso, e à semelhança do que aconteceu durante a crise económica, nota-se já também um acréscimo nas chamadas que tem quer ver com problemas económicos.

Pessoas que perderam entretanto o emprego?
Que perderam ou receiam vir a perdê-lo. Há pessoas que já estão com esse tipo de dificuldades. Não é um número muito significativo, mas é claramente acima do que recebíamos até agora.

A solidão é, então, a principal queixa?
Sim, acaba por sê-lo. Há muitas famílias que estão separadas neste momento, e além de solidão isso também causa ansiedade — é o não poder abraçar o filho ou o neto ou a neta. Há as conversas por telefone, claro, ou através da Internet, mas acaba por ser diferente. Para quem estava habituado a ver os familiares com regularidade e a abraçá-los, esta situação é bastante dolorosa e o tempo custa mais a passar. Mas já era assim antes, como lhe dizia. Um quarto das chamadas que recebemos tem que ver com a solidão, é assim há anos. E não se pense que são só os idosos que se queixam disso. Há pessoas que vivem com outras ou com a família e ligam pela mesma razão. Já recebemos vários pedidos de ajuda por e-mail de pessoas que não querem que a família saiba que ligaram e que não têm espaço suficiente em casa para fazê-lo em segredo e portanto escrevem-nos. Outras vezes ligam mas falam muito baixinho, porque estão no quarto e não querem que a família, seja o pai, o marido ou os filhos, as ouçam. Vivem em solidão mas dentro da família.

Como é que ajudam essas pessoas se telefonar está fora de questão?
Tentamos que o façam ainda assim, que nos telefonem, mas quando isso não é mesmo possível ajudamos através do e-mail, conversando por esse meio, ou encaminhamos para outras linhas que dão apoio por e-mail e chat, como a Voz de Apoio e o Telefone da Amizade, ambas no Porto.

Sentem, por vezes, alguma resistência da parte de quem vos telefona?
Há pessoas que têm muita facilidade em expor o problema, outras nem tanto, e a essas damos um pouco mais de espaço. Há muitos silêncios nas chamadas. Muitas vezes as pessoas ligam, nós dizemos ‘boa tarde’ ou ‘boa noite’, e do outro lado nada, a pessoa não responde, mas também não desliga. Fica à espera. Quando nos apercebemos que há essa dificuldade, dizemos que estamos aqui, “estamos aqui deste lado, estamos aqui consigo, e vamos ficar o tempo que for preciso; quando se sentir à vontade para falar sobre o problema que a levou a telefonar, podemos conversar”. É isto que dizemos, e normalmente resulta, com mais ou menos hesitação a pessoa começa a falar devagarinho e, quando tem a certeza que do outro lado da linha há quem esteja disponível para ouvi-la, acaba tudo por sair em torrente. As pessoas vivem aprisionadas nas suas coisas.

Em termos de prevalência por idade e sexo, mantêm-se os mesmos números, independentemente da queixa?
Sim, até isso se mantém. As pessoas com idades entre os 46 e os 55 continuam a ser as que mais telefonam e logo a seguir a essa faixa etária, e a pouca distância, estão as dos 36-45 e a dos 56-65. É assim há muito tempo. Antes eram mais as mulheres que ligavam, mas de há cerca de um ano para cá essa diferença esbateu-se e agora os homens ligam quase tanto como elas.

Dos telefonemas que a linha tem recebido, como é que diria que se está a lidar com o confinamento?
Como lhe disse há pouco, o tipo de chamada que recebemos não se alterou muito. O que se nota é que as pessoas estão com maiores dificuldades em lidar com problemas que já vinham de trás e obviamente que estar em confinamento não veio ajudar, antes pelo contrário. Quem era ansioso está mais ansioso e quem tinha uma depressão viu esse problema agravar-se. Há o receio de não conseguir marcar consultas e, em alguns casos, a dificuldade de marcá-las, embora tenha havido um esforço enorme por parte dos médicos para fazer chegar prescrições às pessoas que não podem ou não querem ir às consultas.

Nota que tem havido essa dificuldade em marcar consultas?
Não temos um número de queixas suficientes nesse sentido que me permita afirmar que sim, que isso está a acontecer. O que dá a impressão, e aí o número de chamadas é significativo, de que a maior parte das pessoas não quer ir às consultas mesmo quando elas estão marcadas, não querem sair de casa com receio do contágio. Entre ter de sair de casa e não ter de todo acesso a medicamentos, a maioria acaba mesmo por escolher a segunda. E as consultas vão sendo adiadas, adiadas, adiadas, algo que não é de todo aconselhável. Diria que essa é, de facto, a novidade nas chamadas que recebemos.

As chamadas de suicídio também aumentaram?
Tenho tido o cuidado de verificar isso. Esperar-se-ia nesta situação que o número de chamadas em que é óbvia a intenção suicida aumentasse, mas a verdade é que isso não aconteceu. Quer dizer, aumentaram, mas na mesma proporção do que as outras. A percentagem de chamadas de suicídio que recebemos mantém-se nos 6%, 7%. O que não quer dizer que estes casos de solidão e isolamento e depressão não possam derivar nisso, se não forem acompanhados.

Sobretudo se esta situação resultar numa crise ecónomica grave como a de 2008.
Sim, é verdade. Nessa altura, as chamadas de suicídio aumentaram muito, foi evidente a subida em flecha das intenções suicidárias derivadas de problemas financeiros. Quando há não dinheiro para pôr comida em cima da mesa, e ainda por cima há filhos envolvidos, as coisas complicam e de que maneira. É provável que só mais tarde consigamos perceber os efeitos desta situação a esse nível. É que nós achamos que já estamos há muito tempo em casa, mas na verdade só passou um mês e pouco. E se isto resvalar para uma crise económica profunda, não tenho dúvidas de que vamos voltar a receber mais chamadas desse tipo.

É algo que as pessoas têm dificuldade em verbalizar, essa intenção suicidária?
Temos duas situações diferentes: há as pessoas que, mal levantamos o telefone e damos as boas-vindas, falam imediatamente dessa intenção e dessas ideias. No decorrer da conversa, no entanto, muitas vezes acabamos por perceber que foi só uma espécie de descarga, e que essa intenção afinal não era assim tão evidente e que a pessoa, apesar do seu enorme sofrimento, não corre esse risco. Depois há as outras que começam por apalpar terreno, vão falando disto e daquilo e, quando já se sentem mais à vontade com quem está deste lado do telefone, acabam por dizer que isso já lhes passou pela cabeça ou ainda passa.

E os voluntários não têm propriamente um manual de instruções para lidar com esses casos, não é?
Não, não há qualquer tipo de manual. Há normas que nos comprometemos a cumprir, como garantir o anonimato, não fazer juízos de valor, não manifestar preconceitos, não pressionar, valorizar o sofrimento e respeitar a intenção, mesmo que a intenção da pessoa seja suicidar-se e mesmo sendo nós pró-vida. No geral, o que tentamos fazer é perceber como é que a pessoa chegou até ali, o que aconteceu para trás, e normalmente dá resultado. Havia um psiquiatra que dava formação nesta área e que dizia que, se houvesse um manual, nem seriam necessários voluntários. Bastaria gravar uma mensagem a dizer: para depressão clica na tecla 1, para solidão tecla 2. E a solidão, como eu já disse, é muito abrangente, cada um sofre a sua.

Há palavras ou frases que não podem dizer?
Há outras organizações a nível mundial que fazem o mesmo que nós fazemos, como a Befrienders (os samaritanos), que têm por norma perguntar sempre à pessoa que liga, independentemente da razão por que o fez, se já pensou ou tentou suicidar-se. Nós não fazemos isso.

Porque não?
Porque partimos do princípio de que se a pessoa pensou ou tentou só nos diz se quiser. Damos essa oportunidade mas não pressionamos, não colocamos a questão. Aliás, as perguntas devem sempre ser colocadas de forma muito subtil. Às vezes, se notamos que a pessoa tem mais dificuldade em expor o problema, vamos dando um jeitinho, mas nunca pressionando. Também não damos conselhos, vá aqui ou acolá, não. O máximo que podemos fazer é perguntar, em casos de doença psiquiátrica ou perturbação psicológica, se está a ser acompanhada ou se tenciona sê-lo. Podemos sugerir mas não recomendar.

Dar espaço, portanto?
Exato. O nosso lema é ligue-nos, nós escutamos. E nem imagina a diferença que faz dar espaço, e a pessoa sentir-se à vontade para falar. O anonimato ajuda. Estamos lado a lado, ouvido com ouvido, o desabafo acaba sempre por chegar. Entendemos as chamadas de suicídio como um último pedido de ajuda. E é isso que são, caso contrário a pessoa limitava-se a fazer o que tinha decidido fazer. Portanto, é tentar que a pessoa se abra, se liberte de alguma pressão, e quantas vezes não aconteceu já a pessoa falar e mudar de ideias e não fazê-lo naquela tarde ou naquela noite. Há uma processo de recentramento à medida que a pessoa vai falando e desabafando tudo aquilo que não tinha podido desabafar com ninguém, depois ela vai-se recentrando em si própria, analisa-se e acaba por perceber que, por estreita que seja, há uma janela, uma hipótese de encontrar uma solução para o problema. Isso acontece, como lhe dizia, e as pessoas mudam de ideias e nós sabemos que pelo menos naquela noite não aconteceu.

Como é que sabem, se é garantido o anonimato?
Porque vamos recebendo mensagens de agradecimento por e-mail, seja nos dias a seguir, seja mais tarde. No ano passado recebemos um e-mail de uma senhora a agradecer-nos por a termos ajudado há 20 anos. Ela não especificava o tipo de ajuda que tinha pedido e que nós tínhamos dado, mas agradecia, dizia que tínhamos sido fundamentais na decisão de não levar por diante aquilo que tinha planeado, que a nossa chamada permitiu-lhe mudar de rumo e que passou a viver de forma mais tranquila a partir desse momento.

O anonimato é uma angústia?
Sim, é a angústia de todos os voluntários. Naquele momento podemos ficar confortados porque conseguimos contrariar a intenção da pessoa mas não sabemos o que ela vai fazer dali para a frente. Segundo os psiquiatras, estas intenções correspondem a picos. Se a pessoa tiver alguém por perto a quem pedir ajuda, o pico passa, mas não quer dizer que não apareça dali a dois, três meses. Há pessoas que nos pedem ajuda através do e-mail, partindo do princípio de que podemos ligar-lhes a seguir, mas não podemos. Às vezes dá muita vontade de ligar, e quantas vezes durante a chamada não sentimos já vontade de sair dali a correr e ir abraçar a pessoa, mas as normas não o permitem. Também não podemos chamar o 112 ou a polícia em casos de emergência. É assim.

A duração das chamadas continua a ser variável, como foi dito numa entrevista anterior?
Sim, uma chamada tanto pode durar cinco minutos — porque apetece à pessoa falar um bocadinho porque ainda não falou com ninguém naquele dia e trocam-se média dúzia de frases e ela desliga a chamada —, como três horas. É o caso daquelas chamadas em que a pessoa já tomou a decisão de se suicidar e tem tudo preparado mas pede companhia para os últimos minutos. Imagine como fica o voluntário que está do outro lado da linha… Eu próprio atendi algumas assim, quando ainda atendia chamadas, e nem sempre consegui contrariar a intenção da pessoa. Isso ainda me pesa um bocado, de vez em quando lembro-me disso, incomoda-me. Felizmente são poucas as chamadas assim.

Contactos SOS Voz Amiga:

21 354 45 45
91 280 26 69
96 352 46 60
(todos os dias das 16h00 às 24h00)

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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