Coronavírus

Estudo revela que quase metade da população portuguesa se diz psicologicamente afetada pela covid-19 — na China eram “7,6%”

Praça do Rossio, em Lisboa
Praça do Rossio, em Lisboa
Patrícia de Melo Moreira/AFP/Getty Images

É um dos maiores estudos realizados em Portugal sobre o impacto psicológico da pandemia de covid-19 e, além de revelar que praticamente metade da população pode estar a ser psicologicamente afetada pela atual crise, conclui que trabalhadores presenciais e pessoas que habitam em zonas rurais são mais atingidos pela ansiedade e depressão

Estudo revela que quase metade da população portuguesa se diz psicologicamente afetada pela covid-19 — na China eram “7,6%”

Helena Bento

Jornalista

Há uma informação que tem vindo a ser repetida por especialistas na área da saúde mental e que tem ver com a população que é afetada a nível psicológico em situações de catástrofe ou crise como aquela em que vivemos. Essa percentagem oscila entre os 15% e os 25%, segundo os estudos já publicados, segundo os especialistas que os citam, mas outro estudo divulgado esta quarta-feira, realizado pelo Instituto de Psicologia Clínica e Forense em colaboração com outras entidades, revela uma realidade bem diferente.

Quase metade dos inquiridos — e foram muitos, cerca de 10 mil, com uma média de idades de 31,3 anos e na sua maioria mulheres, numa amostra mais expressiva do que a dos outros estudos sobre o mesmo tema realizados até agora em Portugal — classificou o impacto psicológico da pandemia de covid-19 como “moderado a severo”. E disso não se estava à espera, observa, em entrevista ao Expresso, Sofia Brissos, psiquiatria no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, e uma das autoras do estudo.

No documento com o resumo dos resultados enviado às redações, referia-se, em concreto, o caso da China, onde a percentagem de pessoas afetadas, de “participantes que relataram um impacto psicológico moderado a severo”, era de “apenas 7,6%”. Sofia Brissos explica que foram comparados períodos iniciais da pandemia em ambos os países e que a diferença “poderá residir no facto de, em Portugal, quando surgiram as primeiras mortes, já haver mais informação sobre o surto e a noção de que a situação era grave e de proporções inéditas”. Na China, por outro lado, “poderá ter havido a perceção, numa fase inicial, de que se tratava de uma situação circunscrita”. E é essa também a explicação dos autores chineses, segundo os quais “umas das razões possíveis é que, na altura, o surto ainda não era considerado grave e os participantes [na China] não estavam tão bem informados”, lê-se no resumo do estudo desenvolvido em colaboração com o Centro de Investigação em Psicologia da Universidade Autónoma de Lisboa e o Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro.

“A grande maioria não tem uma doença nem precisa de ser medida, mas será necessário algum tipo de intervenção”

No total, 11,7%, 16,9% e 5,6% dos inquiridos relataram ter sintomas “moderados a graves” de depressão, ansiedade e stress, respetivamente. A “grande maioria”, no entanto, “não tem sintomas de quadros clínicos graves”, isto é, não tem uma doença psiquiátrica ou uma perturbação psicológica, nem precisa de ser medicada”, explica Sofia Brissos. Ainda assim, “será necessário algum tipo de intervenção ou a adoção de medidas ou cuidados específicos”, não sendo nunca demais sublinhar o papel que a comunicação social pode desempenhar em todo este processo, acrescenta a psiquiatra. “Informação rigorosa é importante, assim como é importante dar informações sobre como atuar numa perspetiva tranquilizadora da população.”

À semelhança de outros dois estudos sobre saúde mental e pandemia (um deles realizado pela Escola de Medicina da Universidade do Minho, divulgado a 14 de abril, e outro por psiquiatras do Hospital Júlio de Matos, divulgado esta terça-feira), os participantes mais velhos apresentaram níveis mais reduzidos de depressão e stress. O estudo divulgado terça-feira, aliás, mostra que os estudantes com mais de 18 anos são um dos grupos em que as medidas de isolamento social pode estar a ter um maior impacto, logo atrás dos desempregados, assim escreveu o “Público”.

Esse dado era, portanto, esperado, assim como o “impacto significativo” da pandemia nas pessoas com menor nível de escolaridade, nas mulheres e nos desempregados, como revelou o atual estudo. Também as pessoas “mais sintomáticas” apresentaram níveis mais elevados de depressão, ansiedade e stress, seja porque interpretaram esses sintomas como correspondentes à infeção por covid-19, seja por considerarem que corriam maior risco de contágio ou mesmo devido à existência de uma doença crónica. Segundo Sofia Brissos, “ter uma doença crónica tem sido associado a mais ansiedade, depressão e stress, e a um maior impacto psicológico da covid-19”.

Pessoas em meio rural mais afetadas do que nas zonas urbanas

Menos expectável, admite a psiquiatra, era a conclusão de que as pessoas que vivem em meio rural estão possivelmente a ser mais afetadas psicologicamente do que as que vivem em zonas urbanas — até porque um dos estudos anteriores, em concreto o da Escola de Medicina da Universidade do Minho, concluía que a existência de um jardim na habitação era um fator protetor da saúde mental, apresentando essas pessoas melhores indicadores de saúde mental. O que pode explicar essa assimetria? “Isto é especulação mas é também a explicação que vai constar da versão do estudo que será submetida para publicação numa revista científica. E a explicação, a possível explicação, é que as pessoas no meio rural podem pensar que não há recursos suficientes nos hospitais distritais para as tratar, nomeadamente ventiladores, e isso causar-lhes medo”, aponta a psiquiatra. Ou se não pensam, ou já não pensam, podem pelo menos ter pensado numa fase inicial do surto no país.

Outra conclusão do estudo é o facto de, entre as pessoas que continuam a trabalhar, ser menor o impacto da pandemia naquelas que estão a fazê-lo em teletrabalho, a comparar com que o fazem em regime presencial. Porquê? Acaba por ser óbvio “porque não têm de andar de transportes públicos nem expor-se tanto ao vírus”, diz Sofia Brissos, ainda que “isto não explique tudo e haja outros fatores a ter em conta”. Se o número de portugueses afetados pela atual crise vai manter-se invariável ao longo do tempo a psiquiatria não sabe (o estudo de que é coautora pretendia apurar o efeito da pandemia no imediato, como uma “fotografia”, não a longo prazo) mas diria que sim, “que não vai ser diferente daqui para a frente”, e que a pandemia vai continuar a afetar praticamente metade dos portugueses.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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