As pessoas não são números mas às vezes ficam fora dos números - e isso vai ser um problema depois desta pandemia
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Uma crise ou catástrofe abala sempre mais pessoas do que aquelas que aparecem nos registos. “Os estudos já feitos apontam para que 15% a 25% da população seja afetada” em situações como a que vivemos, afirma ao Expresso o bastonário da Ordem dos Psicólogos. Francisco Miranda Rodrigues alerta que é necessário aprender com o passado e providenciar mais apoio psicológico a todos — num país onde o “número de psicólogos no SNS é muito reduzido” apesar de “não haver falta” destes profissionais
O bastonário é perentório: como Portugal “não tem muitas respostas para fazer face a uma crise”, o plano do Governo para proteger a saúde mental da população é o possível nesta fase. Depois será necessário reavaliar as estratégias, até para sair da crise de uma forma mais rápida. “Se uma economia é feita por pessoas, precisamos que estas estejam em condições de a recuperar. Porque o país certamente que irá recuperar, mas em quanto tempo? E com que custos? Económicos e financeiros, é certo, mas também ao nível do sofrimento das pessoas, pela interrupção das suas vidas.”
Que balanço faz dos primeiros dias de funcionamento da linha de aconselhamento psicológico? As coisas têm corrido bastante bem, com um número de chamadas que continua a crescer, o que demonstra a necessidade que já tínhamos de um serviço deste género. Ainda é cedo para fazer grandes balanços, mas até agora confirma-se um interesse pelo serviço.
Qual é a importância da linha nesta altura? O apoio psicológico é uma área imprescindível e uma das dimensões importantes da saúde mental, e é muitas vezes esquecida. Não se trata necessariamente de intervir em pessoas que já tinham uma perturbação psicológica, seja ela ligeira ou grave, mas sim de ajudar pessoas que, mesmo não tendo desenvolvido qualquer perturbação, têm dificuldades em lidar com um desafio específico num determinado momento. Alguns de nós vão conseguir lidar com esta crise durante mais tempo, outros menos tempo, e há já quem esteja a ter dificuldades. Isso não significa que tenham algum tipo de perturbação. Há vários fatores para essas dificuldades existirem, como a relação que têm com a doença [covid-19], a situação no trabalho, no limite até terem perdido o emprego, por exemplo. Essas pessoas não estão a conseguir encontrar a melhor resposta e precisam de apoio especializado.
O número de psicólogos na linha é suficiente? O serviço de aconselhamento psicológico tem 63 psicólogos especializados em psicologia clínica e da saúde, e divididos por quatro turnos. Além destes, os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde contrataram mais 140 para o serviço informativo da covid-19. São cerca de 200 psicólogos no total, com formação específica em intervenção em crise. Até aqui têm sido suficientes, mas vamos continuar a acompanhar a situação para perceber se a capacidade instalada é suficiente e a partir daí avaliar necessidades de melhoria, que certamente existirão, em todo o desenho da linha.
Que tipo de acompanhamento é feito aos profissionais? Além da formação, montámos uma espécie de fórum onde todos os psicólogos que estão ao serviço desta linha podem entrar em contacto uns com os outros para partilhar experiências, práticas e também dificuldades. Trata-se de um apoio entre pares. Existe também uma equipa de psicólogos seniores que supervisionam e dão suporte aos psicólogos da linha, seja pelo fórum, seja por contacto direto. O objetivo é que os profissionais possam permanentemente refletir sobre o seu trabalho, melhorar, se for caso disso, e também detetar situações que precisem de algum reforço.
Há possibilidade de contratar mais profissionais? Sinto que o Governo está sensível a essa questão e que podem vir a ser desenvolvidos esforços nesse sentido, ainda que seja difícil assumir compromissos nesta altura, dada a situação de emergência do país. Os recursos são necessários em todo o lado, para muitas frentes, por isso é difícil agir sem ter todos os dados na mão. Mas repito: houve uma clara demonstração do Governo de que um serviço destes se deveria manter.
Ou seja, para continuar depois de 31 de julho? Após esse período, até fruto das circunstâncias em que vivemos, a nossa opinião é que a linha seria um serviço muito útil e uma mais-valia para os portugueses, tendo em conta que o país não tem grande facilidade de acesso a psicólogos no Serviço Nacional de Saúde [SNS]. O número de psicólogos nos serviços públicos é muito reduzido, particularmente nos cuidados primários [centros de saúde], onde são cerca de 250 em todo o país. Esta linha está montada para responder a situações de ansiedade, medo, muito ligadas ao momento que estamos a viver. Considero que esta linha, com protocolos alterados, seria um bom complemento — mas não um substituto — para situações em que uma intervenção muito curta consiga ajudar as pessoas a lidar melhor com o que estão a sentir, a utilizar as suas próprias competências, a procurar melhores estratégias. Mas teremos tempo para avaliar como esta experiência decorre, qual é a adesão dos portugueses, e a partir daí o Governo pode tomar a decisão que melhor entender.
Como olha para o plano que o Governo ativou para a saúde mental? Somos poucos para dar resposta aos problemas que hoje em dia se colocam. Essa resposta do Governo foi criada depois dos incêndios de 2017 e não foi pensada exatamente para situações como esta. Ainda assim, faz sentido utilizarmos esses recursos e garantir a melhor articulação possível para dar resposta às pessoas que já estavam a ser acompanhadas e precisam de continuar a sê-lo à distância. O país não tem muitas respostas para fazer face a uma crise, por isso o plano em curso é a resposta possível e não deve ser descartada.
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Esse plano é então insuficiente? Independentemente de este plano ter sido ativado, é impossível fazer omeletes sem ovos. Todos, mas mesmo todos, temos de ter esta noção. Por muitos esforços que as equipas possam fazer, o número de psicólogos no SNS é muito escasso. Isso condiciona qualquer intervenção. Se é verdade que há equipas multidisciplinares — e muito bem —, também é verdade que a intervenção psicológica é feita por psicólogos. Será necessário um reforço destes profissionais, tendo em conta o agravamento da situação económica e o impacto que isso vai ter nas necessidades psicológicas dos cidadãos. E será muito importante, ao contrário do que aconteceu em crises anteriores, não ter uma atitude de varrer para debaixo do tapete. Até podemos estar a lidar com casos que já estavam a ser acompanhados ou casos de novas perturbações, mas não vamos conseguir intervir — e todas as orientações e boas práticas dizem que devíamos conseguir fazê-lo — num conjunto mais vasto de pessoas que vão ser afetadas. Estas pessoas geralmente não entram nas contas dos [planos de] intervenção e teremos de ter capacidade para apoiá-las, de modo a evitar que desenvolvam perturbações. Os estudos já feitos apontam para que entre 15% a 25% da população seja afetada por uma crise ou catástrofe. É uma percentagem muito significativa. Se uma economia é feita por pessoas, precisamos delas para a recuperar. E não podemos esquecer-nos disso mais uma vez. Porque o país irá certamente recuperar, mas a questão é: em quanto tempo? E com que custos? Custos económicos e financeiros, certamente, mas também ao nível do sofrimento das pessoas, pela interrupção das suas vidas.
E o país não tem falta de psicólogos. Pois não. Temos recursos humanos: no ativo, neste momento, temos 20 mil. Não é por haver falta de profissionais que não se colocam psicólogos onde eles são necessários. É preciso dar mais prioridade a esta área e não esperar respostas palpáveis, mas sim respostas preventivas, que acabam por ter um efeito imediato.
Ou seja, há muita coisa a rever no futuro. É importante ressalvar que esta é a resposta que temos neste momento, a resposta possível. No futuro, teremos de avaliar todo o modelo de saúde mental em Portugal. E para sermos justos — e o professor Miguel Xavier também tem referido este aspeto — é difícil dizer se o Programa Nacional para a Saúde Mental está ou não bem desenhado quando geralmente não se tem os recursos à disposição para aplicar aquilo que está escrito. Cada um de nós pode ter a sua visão sobre o que poderia ser o programa, mas sem recursos para aplicá-lo, como é o caso, é difícil que o resultado seja bom. É como o problema dos riscos psicossociais nas empresas: não deixam de existir só porque não os queremos avaliar. A esmagadora maioria das organizações não avalia mas isso não significa que as consequências e os custos para as empresas não estejam lá na mesma.
Portugal dá menos apoio psicológico aos seus cidadãos do que outros países? Somos um dos países em que perturbações como a depressão e a ansiedade atingem valores mais elevados em comparação com outros países, e a mesma coisa com o consumo de psicofármacos. Não me atrevo a pôr Portugal tão mal assim [nesta área], não tenho um discurso intencionalmente falacioso em relação a isto. Fazemos alguns esforços que não nos posicionam assim tão mal. Mas há aspetos que devem ser salientados.
Como por exemplo? Não é normal termos a quantidade de ‘coaches’ e motivadores que temos, profissionais que assumem o papel de psicólogos. Ou seja: a psicologia capta um interesse enorme, mas na prática as pessoas mais frágeis e com menos recursos económicos não são apoiadas. Quando passamos por estes tempos de crise, lembramo-nos dos psicólogos imediatamente, mas eles estão cá o tempo todo, incluindo para preparar as pessoas a gerir os tempos de crise. São os profissionais que mais trabalham a promoção da saúde porque se debruçam sobre os comportamentos e os hábitos de vida, e é isso que, num primeiro momento, pode garantir uma vida mais saudável. Portugal está mal cotado nesses indicadores. Temos problemas de saúde desde muito cedo e por isso vivemos os últimos anos de vida muito pior que noutros países. Mais: temos níveis de literacia na saúde muito baixos e isso reflete-se na nossa predisposição para procurar ajuda psicológica - o estigma tem diminuído mas ainda existe. Obviamente que o país não pode ir dos 0 aos 100 nesta área, mas são precisos passos — e tem havido poucos.