O ministro francês das Finanças sabe que a Alemanha não partilha da mesma visão. Ainda esta quinta-feira, Angela Merkel voltou a rejeitar partilhar a responsabilidade pela dívida de outros estados-membros. Le Maire esclarece que não está a defender Eurobonds para pagar dívidas do passado, mas para responder a financiamento futuro e temporário relacionado com a crise da Covid19.
Isso permitiria "ter uma taxa de juro que é a mais atrativa para o conjunto dos estados membros", um meio-termo entre "as taxas de juro de negativas" da Alemanha e "as taxas mais altas" de outros países. Mas é precisamente esta "média" que não interessa a Berlim. Haia, Helsínquia e Viena reforçam o bloqueio alemão.
Mesmo divergindo na leitura, as três palavras mágicas são o resultado do entendimento bilateral entre Le Maire e o alemão Olaf Scholz . Ao que o Expresso apurou, Paris e Berlim partiram para a reunião de terça-feira em desacordo, mas perto da meia-noite desse dia - e depois de telefonemas que terão envolvido a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron - conseguiram acertar agulhas e um texto comum sobre o financiamento do Fundo de recuperação que conviesse a ambos.
Até quinta feira faltava apenas convencer os países anti-eurobonds, incluindo dinamarqueses e suecos, a aceitar o que o eixo-franco alemão pré-cozinhou. Num parágrafo em que cada palavra foi pesada, foi preciso trocar "estrutura de financiamento" por "financiamento apropriado". Parece nuance, mas para quem não pode ouvir falar de mutualização de dívida terá feito toda a diferença.
"Os Eurobonds são uma coisa que não me agradou, não me agrada, nem nunca vai agradar", repete Wopke Hoekstra, ministro das Finanças holandês. "Existe um texto deliberadamente vago sobre instrumentos financeiros inovadores, cada um lê lá o que quiser, mas é importante não nos iludirmos", conclui.
A batalha continua aberta e será agora devolvida aos líderes europeus. Itália promete não desistir, até porque foi por causa desta possibilidade que o ministro italiano das Finanças, Roberto Gualtieri, aceitou o acordo e o resto do pacote de instrumentos que estava em cima da mesa, nomeadamente o controverso Mecanismo Europeu de Estabilidade.
Nenhum país indicou que iria recorrer ao fundo de resgate
Ao fim de três dias de negociação intensa e acalorada - que voltou a sê-lo durante a tarde desta quinta feira - Mário Centeno conseguiu fechar um pacote de 540 mil milhões de euros, num processo em que se envolveram pessoalmente os ministros das finanças alemão e holandês.
Pela primeira vez, o fundo de resgate da Zona Euro poderá ser usado para algo que não é um resgate. Os ministros da Finanças concordam que o Mecanismo Europeu de Estabilidade - responsável pelo terceiro programa de ajuda financeira à Grécia - seja adaptado à crise atual. São criadas linhas de crédito, num total até 240 mil milhões de euros, que estão disponíveis para quem quiser, num montante disponível por país até 2% do Produto Interno Bruto de cada um. O objetivo é que esteja disponível em duas semanas.
A questão passa agora por saber quem será o primeiro a chegar-se à frente para pedir dinheiro emprestado ao MEE ou se esta "rede de segurança" fica por isso mesmo, uma rede de último recurso por utilizar.
De acordo com mais do que uma fonte, nenhum país indicou durante o Eurogrupo que pretende fazê-lo. Nem Itália. Os Governos terão de fazer as contas, e perceber se a poupança com os juros oferecidos pelo Mecanismo sediado no Luxemburgo compensam as "condições suaves" aplicadas e afastam o estigma associado a este instrumento. Para Roma, recorrer ao MEE poderia significar uma batalha doméstica com a oposição liderada pelo nacionalista Matteo Salvini.
As vitórias e as cedências holandesas
O ministro holandês das Finanças saiu da videoconferência a garantir que só haverá empréstimos "sem condições" - leia-se imposição de reformas e austeridade mais à frente - para financiar despesas relacionadas com saúde, ligadas ao novo coronavírus.
A intenção dos restantes não era essa, mas sim que o dinheiro pudesse também ser usado para responder aos impactos negativos na economia. Wopke Hoekstra leva aqui a melhor, com o argumento de que de outra forma o acordo nunca seria aceite pelo seu parlamento. Não quis comprar uma guerra interna e escudou-se no apoio parlamentar para manter a uma posição mais dura.
"Portanto, (o MEE sem condições) nunca poderá e não será utilizado para, por exemplo, efeitos económicos indiretos", sublinhou aos jornalistas. Porém, o texto do acordo tem outra intenções escondidas nas entrelinhas. Diz que o apoio pode ser usado par financiar "despesas direta e indiretamente ligadas à saúde, cura e prevenção". De acordo com fonte europeia, isto permitiria que o dinheiro pudesse servir para cobrir outro tipo de despesas, por exemplo, ligadas ao confinamento, e à necessidade de manter pessoas em casa e não nos seus postos de trabalho.
A mesma fonte dá conta que o principal recuo holandês foi aceitar negociar, algo que se recusou a fazer na madrugada de terça-feira, quando perante cada contra-proposta que recebia, respondia que "estavam mais longe" de um acordo do que antes. Ao conseguir que os restantes aceitassem que as linhas de crédito fossem para a saúde, acabou por deixar cair lógica troikiana da condicionalidade. Até então tinha insistido para que ficasse esclarecido no papel que os países teriam "tomar medidas" no pós-crise para corrigir e voltar ao caminho da sustentabilidade.
Cai também por terra a pressão para que os países que recorressem às linhas de crédito tivessem de assinar "memorandos de entendimento". O objetivo agora é que haja um modelo comum para todos os países.
Questionado sobre se o âmbito dos empréstimos do MEE não ficam demasiado limitados, Mário Centeno diz que não. Na interpretação do presidente do Eurogrupo, os países da Zona Euro deverão conseguir "identificar despesas direta ou indiretamente ligadas à saúde, cura e prevenção até um montante de 2% do PIB". No caso de Portugal, são mais de 4 mil milhões de Euros.
Outro ponto em que os holandeses levaram a melhor diz respeito ao SURE, o programa de 100 mil milhões de euros, também em empréstimos, que a Comissão Europeia desenhou para os 27 países pudessem financiar regimes de lay-off e outros programas nacionais de apoio à manutenção de postos de trabalho.
A proposta que chegou ao Eurogrupo era só para as questões relacionadas com emprego, mas Haia pressionou até ao fim para que o âmbito fosse alargado, uma vez mais... às despesas de saúde. Duas fontes apontam para duas razões: uma é que os holandeses queriam que ficasse claro que o SURE é um instrumento temporário e não é de todo um "seguro europeu de desemprego" - algo que seria difícil de vender internamente; outro motivo está no facto de ser na área da saúde que a Holanda teria despesas elegíveis para recorrer ao instrumento.
"Os Países Baixos não são o candidato mais provável para usá-lo, mas também é cedo para dizer", admitiu Hoesktra aos jornalistas. Porém, na reunião terá dito que não pretendia recorrer ao SURE.
Apesar de terem conseguido esta alteração, nem tudo o que pediam para este instrumento foi aceite pelos restantes.
Portugal apoiou posição francesa
No final, para garantir um acordo e evitar as acusações de falhanço político, todos tiveram de ceder, numa reunião em que a estratégia - também apoiada por Portugal - passava por garantir que o pacote global não incluiria apenas o MEE - muito por pressão da Alemanha, que rejeita Eurobonds - o SURE e o Banco Europeu de Investimento (BEI), mas também um quarto pilar.
Este quarto elemento é o tal 'Fundo de Recuperação' proposto por França. Nesta questão há um alinhamento dos países que continuam a querer a emissão conjunta de dívida e nos quais se incluem também Portugal, Espanha, Irlanda, Grécia ou Luxemburgo.
Se na questão da condicionalidade do MEE a Holanda ficou isolada e obrigou Paris e Berlim a endurecerem o discurso. Na questão da mutualização da dívida há dois blocos que continuam em rota de colisão.
É que há países que continuam a ver este pacote como uma solução em "que a Alemanha e a Holanda não põem um cêntimo", adianta um outra fonte.
De todos os instrumentos discutidos, o reforço da capacidade de empréstimo do BEI é provavelmente o que menos polémica gera. Terá mais 200 mil milhões de euros para apoiar empresas, em particular as de pequena e média dimensão.
Líderes reúnem em duas semanas
O texto fechado pelo Eurogrupo em formato alargado - os 19 da Moeda Única mais os colegas que não têm Euro - segue agora para a validação dos líderes europeus. Esta sexta-feira, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, marcou uma nova videoconferência de chefes de Estado e de Governo para 23 de abril.
Segundo fonte europeia era o melhor calendário para toda a gente - capitais e instituições - e dá mais tempo para que Charles Michel e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, preparem o "roteiro" e o "plano de ação" para apoiar a retoma.
Outra questão que também só os líderes poderão decidir - e cujo processo continua atrasado - diz respeito aos montantes do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para 2021-27. A Comissão Europeia está a preparar uma proposta que substitua a anterior - equivalente a 1,11% da riqueza europeia - e Von der Leyen tem defendido que o QFP é que deve ser o "novo Plano Marshall". Mas para isso é preciso que os países ponham lá mais dinheiro do que apenas 1% defendido pelos chamados frugais: Holanda, Dinamarca, Suécia e Áustria.
Centeno face à primeira crise
A pandemia da Covid19 põe a teste a liderança de Mário Centeno, cujo mandato termina em julho. França e Alemanha colocaram-se também à frente da negociação para encontrar um compromisso e de quarta para quinta fizeram questão de passar esse recado à imprensa. Fonte de um dos dois países diz, no entanto, que o trabalho foi sempre feito em coordenação com o presidente do Eurogrupo.
Ao contrário de outras reuniões, o ministro português terá sido mais assertivo. Em várias ocasiões - principalmente durante a videoconferência de terça-feira - saiu do tom para lembrar que a atual situação é "uma emergência a sério", distinta das habituais discussões de ministros das Finanças. Noutras ocasiões, quando França e Alemanha queriam voltar às conversas bilaterais terá insistido em manter a solução que propunha e pressionado a decisão.
A intransigência holandesa testou os limites de vários colegas. Na madrugada de quarta-feira, no meio da irritação, Le Maire chegou mesmo a considerar a falta de entendimento uma "vergonha".
O facto de não estarem reunidos fisicamente não facilitou. Valeu o método de negociação à margem, em telefonemas e conversas bilaterais e trilaterais. Esta quinta-feira, Centeno só deu início à videoconferência a 27 depois de ficar fechado o consenso entre Holanda, Itália, França e Alemanha. O Eurogrupo que era para começar às 16h de Lisboa, começou só às 20h30. Depois foi rápido e terminou com um aplaudo dos colegas ao presidente.