8 abril 2020 13:29

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Esta é a história de um cartaz divulgado pela Assembleia Feminista de Lisboa (AFL) que circulou nas redes sociais e teve centenas de partilhas. Uma imagem que divulgava a expressão “máscara-19”, que poderia ser usada nas farmácias como um pedido de ajuda por parte das vítimas de violência doméstica, mais expostas ao agressor em tempos de isolamento social e quarentena. No entanto, esta campanha nunca funcionou, não foi concertada entre autoridades responsáveis pela matéria. AFL, que admite falhas na comunicação, apagou parcialmente a publicação no Facebook mas mantém-na no Twitter e Instagram
8 abril 2020 13:29
A ideia era replicar aquilo que já era feito noutros países: criar uma palavra-chave que as vítimas de violência doméstica pudessem usar numa ida à farmácia. “Máscara-19”, seria esta a expressão que quando ouvida pelo farmacêutico desencadearia um pedido de ajuda e um contacto às autoridades. A ideia era esta. Foi divulgada nas redes sociais pela Assembleia Feminista de Lisboa e dava conta que a iniciativa estava a decorrer apenas na farmácia do Centro Hospitalar de São João, no Porto. Ora, no São João nunca tal esteve em funcionamento. Nem em nenhuma outra farmácia.
Ao São João, confirma fonte oficial daquela unidade de saúde, chegou realmente um e-mail enviado pela Ordem dos Farmacêuticos com a divulgação da iniciativa “máscara-19”. Ao que o Expresso conseguiu depois apurar, o hospital mostrou-se disponível para participar mas não recebeu qualquer indicação sobre os procedimentos a adotar e, por isso, a ação não se encontra nem nunca se encontrou em funcionamento.
A campanha inspira-se em histórias que aconteceram em Nancy, França, e nas Canárias, Espanha, ambas com apoios estatais. “A ‘mascarilla-19’ foi iniciada pelo Instituto Canário de Igualdade do Governo das Canárias, e tendo em conta o sucesso, pareceu-nos urgente transpô-la para o contexto português”, explica a Assembleia Feminista de Lisboa numa nota enviada ao Expresso na noite de terça-feira.
Por isso, a AFL diz ter contactado a Associação Nacional de Farmácias, serviços farmacêuticos nacionais, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) e Ordem dos Farmacêuticos. Esta última confirmou entretanto ao Expresso ter recebido a campanha e partilhado entre associados, não havendo qualquer vínculo ou apoio institucional. "Qualquer divulgação que tenha ocorrido desta campanha terá sido a título individual, por serviços farmacêuticos, farmácias ou pelas próprias associações", esclarece fonte da Ordem dos Farmacêuticos.
“A Ordem dos Farmacêuticos comunicou internamente a campanha”, explica a fonte da AFL. “O Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) foi a primeira instituição a responder positivamente ao nosso apelo, pedindo-nos o cartaz e onde nos informaram que os profissionais da Farmácia de Ambulatório, que fazem atendimento aos utentes, tinham já conhecimento deste assunto e indicações para agirem em conformidade.” Estas comunicações foram feitas através de e-mail e alguns telefonemas, informa a mesma AFL.
A Associação Nacional de Farmácias, contactada pelo Expresso, diz que apenas acompanha e está associada a campanhas contra a violência doméstica com o cunho da Direção-Geral da Saúde.
Depois de um perfil privado ter precipitado o lançamento da campanha, este domingo, a AFL decidiu que era tempo de torná-la pública e avançar, mesmo sem estar sequer implementada na única farmácia de que havia referência.
Mas há outro problema: o primeiro texto que estava associado à imagem, um cartaz que fazia referência à campanha “máscara-19”, deixou de seguir nas partilhas. Ou seja, soava a campanha a nível nacional quando tinha lugar apenas numa farmácia, no Porto, a tal que ainda nem tinha em marcha o tal código para ajudar vítimas de violência doméstica.
“A publicação tornou-se então viral e rapidamente foi descontextualizada”, continua a nota da AFL. “Tendo em conta a viralização da campanha e porque ficámos apreensivas quanto à descontextualização, apelámos uma vez mais às instituições [referidas em cima] para que apoiassem a mesma, dando-lhe assim uma abrangência nacional.” As respostas escassearam.
A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género surgiu em cena a seguir, quando a campanha ganhou tração nas redes sociais. “Após a publicação ter ganhado dimensão, fomos contactadas pela CIG, que confirmou ter conhecimento do apelo através do mail que enviámos nas anteriores semanas e pela Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade”, explica a AFL. “Em ambos os casos foram transmitidas reticências e dúvidas relativamente à campanha e ao seu formato, pois esta poderia colocar mulheres em perigo, com o argumento que agora os agressores sabiam do código e poderiam impedir as mulheres de ir à farmácia. A isto respondemos que essa perspectiva não nos fazia sentido pois sendo assim nenhuma campanha sobre violência doméstica deveria ser pública ou largamente difundida.”
A AFL diz ter contactado o Centro Hospitalar Universitário de São João, na tarde de terça-feira, para esclarecer a situação. “Ficámos a saber que, estando o CHUSJ sob tutela governamental, os seus serviços farmacêuticos teriam de suspender a campanha (isto é, a sua comunicação oficial e expressa no local), uma vez que a mesma não conta com apoio do Governo. É por isto que iremos retirar o post original, já que refere diretamente à implementação neste centro e emitir um comunicado para esclarecer o sucedido.”
Apesar de tudo, a AFL revela que o facto de os farmacêuticos do CHUSJ estarem “já instruídos” quanto à campanha em causa deixa antever que “nenhuma vítima de violência será deixada sem resposta”. Mais: “até agora, e devido à rápida propagação da informação, recebemos já o contacto por parte de diversas farmácias que gostariam de implementar a campanha e que demonstraram o seu apoio à mesma”. O interesse, diz a AFL, estende-se a várias autarquias.
“Podemos colocar muita gente em risco”
A Associação de Apoio à Vítima (APAV) é uma das instituições envolvidas no trabalho que está a ser desenvolvido neste momento de pandemia, em que as vítimas estão mais expostas ao agressor - ainda esta semana abriu um centro de acolhimento temporário de emergência, que faz parte da resposta do Governo para aumentar o número de vagas em abrigos.
Ao Expresso, Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pelo centro de acolhimento temporário de emergência da APAV, considera que a divulgação de ações como a “Máscara-19” sem que estas estejam concertadas com as autoridades competentes pode ser “irresponsável”.
“Num cenário nacional, as coisas têm de ser feitas de outra maneira porque, sem querer, podemos colocar muita gente em risco, seja porque o espaço em que a vítima usa a expressão não sabe o que significa ou seja porque podemos correr o risco de banalizar a expressão e deixa de se perceber para que serve”, sublinha Daniel Cotrim, que ressalva que ainda assim “todas as medidas que possam ser de prevenção, sensibilização e que possam de alguma forma apoiar situações de violência doméstica são importantes”, mas “têm de estar articuladas com as respostas do sistema”.
A APAV apela para que sejam seguidos os conselhos da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. “Essas é que são as medidas adotadas, que são consensuais e do conhecimento de toda a rede e dos parceiros nesta matéria. Outras formas, não nos parecem mal, mas tem de se perceber se a comunidade e os parceiros as conhecem porque podemos agora começar todos a inventar sinais”, diz Daniel Cotrim.
O Governo, em parceria com várias organizações de defesa das vítimas de violência doméstica e através da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, desenvolveu uma resposta focada no período da covid-19. Além do aumento do número de vagas nos centros de acolhimento da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, foi ainda lançado um sistema de SMS, que permite o contacto de forma gratuita e confidencial (3060) para pedir ajuda, assim como o reforço das linhas já normalmente disponíveis.
De acordo com dados divulgados pela União Europeia, após a primeira semana de isolamento, os casos de violência doméstica aumentaram um terço “de forma generalizada e em alguns países da UE”. Numa nota enviada às redações, Bruxelas sublinha que em quarentena se torna muito difícil para as vítimas pedirem ajuda, pois o “agressor está sempre por perto”, uma vez que estão “fechadas em casa e expostas aos abusos por maiores períodos de tempo”.
“Estes dias e semanas são especialmente perigosos para as mulheres. Todos enfrentamos grandes desafios psicológicos durante o isolamento e a quarentena, mas as mulheres e, por vezes, também as crianças, em casas não seguras deparam-se com um penoso teste de stress. Por isso temos de prestar particular atenção a este assunto e expandir as nossas ações e travar a violência contra as mulheres, disse Evelyn Regner, do Comité para os Direitos das Mulheres e Igualdade de Género da União Europeia. “Não vamos deixar as mulheres europeias sozinhas.”
Assim, a UE apela a que os vários Estados-membros flexibilizem as suas formas de contacto para fazer denúncias e também o aumento da capacidade de abrigos. “Isto inclui simples maneiras de contactar e alertar a polícia seja através de SMS ou chats online, assim como o uso de palavras-chave junto de médicos ou farmacêuticos.” No entanto, esta última sugestão não foi adotada em Portugal.
“Assumimos total responsabilidade pela falha de comunicação”
Tal como anunciado na nota ao Expresso, esta quarta-feira de manhã a Assembleia Feminista de Lisboa retirou a publicação no Facebook, mantendo para já no Twitter e Instagram. Para além de centenas de partilhas e ‘gostos’, os comentários multiplicavam-se.
A AFL publicou ainda um “comunicado” no Facebook (AQUI), onde replica a maior parte das explicações que dera ao Expresso. Nos comentários, a AFL colocou a prints da publicação original, abrindo a porta para novos mal-entendidos e partilhas.
“Assumimos total responsabilidade pela falha de comunicação que existiu na divulgação do cartaz relativo à campanha implementada pelo CHUSJ”, pode ler-se no comunicado. “A nossa publicação foi motivada pelo facto de que o cartaz já havia sido divulgado no Facebook por terceiros, tendo a nossa página sido etiquetada, o que nos deixou muito otimistas relativamente ao rumo da campanha. Reconhecemos agora que a mensagem do cartaz deverá ser alterada de forma a que se entenda que a vítima deve recorrer à farmácia em que o cartaz esteja afixado, e não levando a crer que se poderá recorrer a qualquer farmácia nacional, como foi pensado inicialmente, à semelhança da campanha no estrangeiro.”
Contactos
Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica
Tel.: 800 202 148 (gratuito, 24 horas, todos os dias)
Linha SMS: 3060 (gratuito, 24 horas, todos os dias)
Email: violencia.covid@cig.gov.pt
APAV
116 006 (gratuito, 09h-21h, todos os dias)
Mais contactos AQUI.