Holanda não é exemplo de preparação para a pandemia
Transeuntes no centro de Haia, a 3 de abril de 2020. As medidas de confinamento de muitos países não foram adotadas na Holanda
BART MAAT/epa
O país cujo ministro das Finanças causou polémica debate-se com a sobrecarga do sistema de saúde. Primeiro-ministro Mark Rutte procura mitigar efeitos do discurso do seu colega de Governo no Conselho Europeu
São nove da manhã e no mercado ao ar livre na rua Dapperstraat, em Amesterdão, estão a montar barracas de fruta. A rua está quase deserta, mas a voz de um dos coordenadores do mercado, vestido de colete cor-de-laranja, ecoa entre as fachadas: “Mantenham a distância”. Um casal de madrugadores, assustado, obedece e prossegue com metro e meio de distância.
Fazer compras no mercado continua a ser possível na Holanda em tempos de covid-19, graças ao sistema de ‘lockdown inteligente’, termo introduzido pelo primeiro.ministro Mark Rutte. Sair da casa só quando estritamente necessário, vigorando ordem de distanciamento social e proibição de agrupamentos de mais de duas pessoas.
Ainda assim, as coffee shops continuam abertasem regime de take-away e os serviços religiosos estão isentos das limitações. O consumo de canábis e as missas dos grupos ultracalvinistas, embora reprovados por virólogos, podem continuar pacíficamente.
O primeiro caso de covid-19 na Holanda foi detetado a 27 de fevereiro, no sul do país. Até esta sexta-feira, 3 de abril, havia mais de 15 mil casos de infeção e 1487 mortos. A capacidade das unidades de cuidados intensivos ameaça esgotar-se em poucas semanas.
A percentagem de casos confirmados que resultaram em morte é de 9,07, o que coloca a Holanda em terceiro lugar na tabela europeia da mortalidade causada pelo novo coronavírus. Só fica atrás da Itália e de Espanha, os países que o ministro das Finanças holandês, Wopke Hoekstra, queria ver investigados pela sua impreparação orçamental para a pandemia.
Ligação inquebrável com a Europa
Além da crise sanitária, há preocupações realtivas aos efeitos económicos da pandemia. O Governo anunciou um pacote de medidas para apoiar empresas e consumidores, que poderá atingir um valor total de 65 mil milhões de euros nos próximos meses. Em comparação: a Alemanha irá gastar mais de 350 mil milhões de euros; a Itália cerca de 25 mil milhões.
“Vamos proteger a nossa economia desta crise, a todo o custo”, anunciou Rutte em março. Como economia mercantil, a Holanda depende da Europa. O velho ditado diz: “Quando a Alemanha espirra, a Holanda fica de cama”. Outro exemplo da interligação económica é a KLM-Air France. Sem o contributo de trabalhadores de outros estados-membros da UE em sectores tão diversos como as estufas ou a tecnologia de informação, a economia holandesa não poderia funcionar.
Hospital de campanha num centro de congressos de Maastricht, a 3 de abril de 2020
MARCEL VAN HOORN/epa
Na semana passada, a comunicação social holandesa deu pouca atenção à tempestade que se levantou na Itália, em Espanha e em Portugal, em reação às declarações do ministro Hoekstra, que o primeiro-ministro António Costa considerou “repugnantes”. Só a publicação, no jornal alemão “Frankfurter Allgemeine Zeitung”, de uma carta aberta de um grupo de dirigentes italianos, condenando a “falta de ética e solidariedade” do Executivo holandês, despertou a atenção da opinião pública holandesa.
Pressão alemã
Desde então, tem crescido a resistência contra o bloqueamento de uma solução da crise por via da emissão de dívida mutualizada, os chamados coronabonds, dentro da coligação de centro-direita e em círculos de economistas influentes.
As bancadas parlamentares de dois dos quatro partidos da coligação governamental criticaram o libral Rutte e o democrata-cristão Hoekstra, falando em “desastre diplomático” e da necessidade de um “Plano Marshall para a Europa do Sul”.
Numa carta aberta no diário “De Volkskrant”, um grupo de mais de 60 economistas defendeu o uso do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES) e um solução temporária com coronabonds como via de saída da crise.
Decisivo no reconhecimento da “pouca compaixão” de Hoekstra foi, muito provavelmente, o longo telefonema entre Rutte e a chanceler alemã Angela Merkel, após a carta aberta no jornal de Frankfurt. Rutte prometeu, em seguida, disponibilizar mil milhões de euros para um fundo de apoio especial para o Sul da Europa.
Paralelamente à polémica sobre as declarações do ministro, há críticas à falta de unidades de cuidados intensivos nos hospitais da Holanda. A oposição acusa o Governo de “negligenciar” o sistema de saúde. Hospitais alemãoes já se ofereceram para receber pacientes holandeses diagnosticados com covid-19. E isto sem fazer perguntas incómodas.