Covid-19. “Ter saúde mental será importante até para sobrevivermos a esta crise. E mantém-se essa saúde mental com informação verdadeira”
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José Miguel Caldas de Almeida, professor na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa e autor do livro “A saúde mental dos portugueses”, diz que está “apavorado” com o que vai ser a saúde mental em Portugal depois desta crise. E por isso mesmo apresenta soluções para que não se cometam erros irreversíveis. Está ainda preocupado com outro valor fundamental: a verdade. “É preciso informação e contenção em relação à ansiedade e aos medos que circulam em toda a população. É importante que sejam criados mecanismos que ofereçam informação tanto a nível nacional como local.” Informação verdadeira
José Miguel Caldas de Almeida, professor de Psiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, não tem dúvidas de que a atual situação de pandemia terá “um impacto muito significativo” na saúde mental dos portugueses, mas esse impacto será tanto menor quanto maior a capacidade do Governo de colmatar as “várias insuficiências” e evitar “a rutura dos serviços de saúde públicos e do sistema de apoio social”. “O que aprendemos com outras emergências, como a crise financeira de 2008, é que grandes privações ao nível dos rendimentos, desemprego, dívidas e insegurança em relação à possibilidade de manter a habitação são fatores com um grande impacto na saúde mental”.
Em entrevista ao Expresso, o especialista, que foi também Coordenador Nacional para a Saúde Mental e responsável pela implementação do Plano Nacional de Saúde Mental, entre 2008 e 2011, alerta ainda para a tentação de, “face à penúria de recursos” que se avizinha, esquecer-se “ainda mais a saúde mental” e apela a um reforço das equipas de saúde mental comunitárias. “Sabendo nós que imensas famílias vão perder pessoas e há outras tantas pessoas que vão sobreviver mas com sequelas, seria muito importante estas equipas poderem contribuir para a recuperação”.
Em termos gerais, qual o impacto ao nível da saúde mental de uma situação como a que vivemos ? O impacto será muito significativo, disso não tenho dúvidas, em Portugal e em todo o mundo. É inevitável que assim aconteça. O estudo aprofundado que se fez das várias situações de emergência nos últimos 20 anos assim o mostra. Essas situações são sempre acompanhadas de impactos na saúde mental.
Que impactos são esses? É importante distinguir, desde logo, os impactos que se verificam a curto prazo dos que se verificam a médio e longo prazo, e os impactos ao nível das chamadas perturbações mentais comuns, como a ansiedade e a depressão, e das perturbações mentais mais graves. São grupos com problemas muito diferentes. A magnitude dos efeitos ao nível da saúde mental está associada, desde logo, à gravidade da epidemia e à mortalidade. O impacto na saúde mental de determinada comunidade será tanto maior quanto mais pessoas dessa comunidade morrerem. E quanto mais tempo durar esta situação, maior será o impacto a nível de saúde mental. O que aprendemos com outras emergências, como a crise financeira de 2008, é que grandes privações ao nível dos rendimentos, desemprego, dívidas e insegurança em relação à possibilidade de manter a habitação são fatores com um grande impacto na saúde mental. O fator tempo e a capacidade de resposta dos governos para colmatar estas insuficiências serão decisivos nisto.
Há pouco distinguia os impactos de curto e de médio e longo prazo. Pode explicar melhor? Os problemas que, a curto prazo, se vão colocar de uma forma mais aguda e que devem exigir a maior atenção têm que ver com as doenças mentais graves, como as psicoses. E isto porque se trata de doentes muito vulneráveis, tanto por causa dos sintomas da doença, como pela incapacidade que sentem em vários níveis da sua vida. Além disso, são pessoas que dependem muito de outrem e precisam de acompanhamento e de uma rede social de apoio. A maioria está em centros de dia ou em residências. E é de temer que, estando a maior parte desses serviços totalmente dependentes de organizações não-governamentais com estruturas financeiras frágeis se torne difícil sustentá-los, num momento em que as prioridades são claramente outras que não a saúde mental. A minha sugestão é que se olhe para estas pessoas, e também para os sem-abrigo e os idosos que vivem isolados — são estes os grupos mais vulneráveis —, e se tomem medidas inovadoras e, sobretudo, coordenadas. A curto prazo, e tendo em conta a situação em que vivemos, a prioridade deveria ser esta.
E no caso de perturbações como a ansiedade e a depressão? No caso da ansiedade e da depressão, não creio que os efeitos a curto prazo sejam muito significativos. A longo prazo, sim, podemos esperar um aumento da prevalência dessas perturbações mentais e um agravamento de alguma situações, que vão passar de um nível ligeiro, moderado, para um nível mais grave. Mas isto não se vai verificar já. Ou seja, se fizéssemos agora um inquérito, não iríamos encontrar grandes diferenças.
Porque é que não seríamos capazes de encontrar já essas diferenças? Em Portugal, no ano passado, cerca de 7% da população teve uma depressão clinicamente caracterizada e 12% teve problemas de ansiedade. Não acho que, por causa desta epidemia, surjam problemas novos e muito significativos nas próximas duas, três semanas, na vida destas pessoas. Daqui a algum tempo talvez as coisas se compliquem, porque as pessoas estão a viver em espaços confinados. Ultrapassada esta primeira fase, vão surgir tensões, incluindo no meio familiar, e há apoios sociais que as pessoas podem vir a deixar de ter. Assim, estes problemas de depressão e ansiedade em pessoas menos resilientes podem vir a agravar-se. Será decisiva a capacidade do país de evitar uma situação catastrófica em termos de rendimento, dívidas e perda de emprego, porque é precisamente aí que tudo se vai complicar e de forma muito séria. O que não quer dizer, claro, que não possam ser tomadas medidas na área da prevenção.
Que tipo de medidas? Há milhões de pessoas num regime de vida totalmente diferente, confinadas ao seu espaço doméstico, o que, como referi, trará implicações para a saúde mental. As medidas a adotar deveriam passar sobretudo pela informação. Informação e contenção em relação à ansiedade e aos medos que circulam em toda a população. Todos nós andamos, de uma forma ou de outra, preocupados. É importante que sejam criados mecanismos que ofereçam informação tanto a nível nacional como local. E que haja um reforço das respostas já existentes, mais do que a criação de novas respostas. A Organização Mundial de Saúde aprendeu muito desde o 11 de Setembro. Fizeram-se muitos estudos e intervenções em emergências no campo da saúde mental e foi esse o princípio que ressaltou de tudo isso. A medida mais importante é o reforço dos serviços de saúde públicos, mais do que o aparecimento de várias iniciativas espontâneas, mesmo por parte de organizações não-governamentais.
Portugal tem das prevalências mais elevadas de doenças psiquiátricas na Europa. Sairemos disto pior que os restantes países europeus? Depende do que formos capazes de fazer para proteger as pessoas, das medidas que forem implementadas nesse sentido. Se o nosso sistema de saúde e o nosso sistema de apoio social forem tão resilientes quanto os dos outros países europeus, diria que vamos sair mais ou menos da mesma forma, apesar das diferenças que subsistem. O que será decisivo é a nossa capacidade de evitar a rutura desses sistemas. A tentação de esquecer a saúde mental é enorme agora e há o risco de que desça mais uma vez na escala de prioridades. Por um lado, eu entendo, porque se tiver de escolher entre como vou responder ao tratamento de ansiedade e depressão e entre ter ventiladores, não vou hesitar um segundo. Ainda assim, há que não esquecer aquilo que é a saúde mental positiva, a sensação de energia, o ânimo, a vontade de enfrentar problemas. Isso é um capital importantíssimo. É muito importante que essa saúde mental se preserve, porque quando passar este período mais agudo e entrarmos na fase de desgaste e olharmos para o número de mortos e vermos pessoas conhecidas nessa lista de mortos, as coisas vão ser mesmo complicadas. E ter saúde mental será importante até para sobrevivermos.
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Como é que se mantém essa saúde mental? Com informação, desde logo, e com informação verdadeira. As pessoas precisam de sentir que estão a dizer-lhes a verdade e que podem confiar na informação que lhes está a ser dada. Precisam de sentir que, apesar das dificuldades, o Governo preocupa-se com elas - e pode até nem conseguir resolver os problemas, mas pelo menos preocupa-se. É muito importante apoiar o desenvolvimento de uma estratégia que permita definir prioridades e responder com medidas práticas aos casos mais graves, integrando todas as iniciativas que existem numa estratégia global. Isso e começar já a pensar numa estratégias para os desafios que se vão seguir a esta crise. Eu, na verdade, eu estou apavorado com o que vai ser a saúde mental em Portugal. Vamos sair muito debilitados e o preço a pagar será, seguramente, muito elevado. Por exemplo, há o risco de, depois desta pandemia, com a penúria de recursos, aparecerem vozes a dizer que é necessário voltar a colocar as pessoas com doenças mentais graves nos grandes hospitais, porque é menos dispendioso em termos financeiros. Em Itália já estão a fazê-lo, já estão a tirar doentes das residências na comunidade e a colocá-los de novo nos hospitais. O risco é este, que se criem soluções temporárias em períodos de crise que depois se tornam definitivas.
No seu livro cita vários estudos que mostram que houve um aumento do número de suicídios durante a crise de 2008. Podemos esperar o mesmo desta pandemia que se teme que se transforme também numa crise económica? Aí a questão do tempo será ainda mais importante. Só mais para a frente conseguiremos perceber se esses números aumentaram. O suicídio é um fenómeno multifatorial, portanto acho que vai depender mais dos fatores sociais e económicos do que propriamente do surto em si. Se houver uma situação de calamidade social e económica, pode haver impactos a esse nível a longo prazo.
Quais os grupos de risco neste caso? Curiosamente, o que aconteceu na crise financeira de 2008 foi que se manteve o predomínio do risco maior para as mulheres (que, de resto, têm um risco maior em quase todas as perturbações de saúde mental), mas houve um maior aumento de perturbações de ansiedade e depressão nos homens. Ou seja, as mulheres, que já estavam à frente, mantiveram-se à frente, mas os homens tornaram-se mais parecidos com elas. Mas isto foi na crise anterior, em que os problemas de desemprego e trabalho precário foram gravíssimos, nesta não sabemos bem o que vai acontecer. Acho que, se esta pandemia se prolongar por muito tempo, e dado o papel das mulheres na casa e na gestão da casa, pode ser mais complicado para elas. Por outro lado, os homens têm mecanismos de suporte social (como o sair de casa e juntar-se, no caso dos homens idosos, a outros reformados para jogar xadrez no jardim, por exemplo, vemos muito isso) de que vão estar privados agora, portanto é difícil antecipar isso.
É também expectável que se agrave o problema que existe em Portugal com o consumo de psicofármacos? Sim, também não acho que seja para já, mas esse consumo vai certamente aumentar. Sobretudo o de ansiolíticos, a que as pessoas recorrem muito em automedicação. No caso dos antidepressivos isso não acontece tanto, por isso suponho que o consumo destes até possa diminuir, pela diminuição das consultas devido ao surto. Mas em relação aos medicamentos o que me parece fundamental é que os doentes psicóticos não fiquem sem medicação.
A bastonária da Ordem dos Farmacêuticos assumiu na quinta-feira que já há falhas em alguns medicamentos… Sim e isso preocupa-me bastante. Muitos destes medicamentos são hoje feitos na Índia e na China e, se há um problema geral de abastecimento, obviamente que isso também vai afetar os medicamentos. Estes doentes mais graves, com psicoses, são muitas vezes pessoas com poucos meios económicos e, se falham as consultas, e as consultas vão falhar durante algum tempo, podem ficar sem medicação. É preciso criar um mecanismo para evitar isto, criar listas com o nome dos doentes mais graves e, se necessário, enviar os medicamentos pelo correio, mesmo gratuitamente, ou assegurar que os centros de saúde os fornecem.
Quais os riscos de interromper a medicação, no caso desse doentes? São pessoas que, se estiverem numa determinada fase da doença, a interrupção da medicação pode significar que elas adoecem de novo, que descompensem, que tenham novos surtos psicóticos e seja complicado depois gerir.
Falava das consultas que vão ficar por realizar. Como evitar isso? Pela contratação de mais pessoas? O Governo já percebeu que vai ter de contratar mais pessoas mas a prioridade tem sido o reforço das equipas de primeira linha, que lidam diretamente com casos de contágio. Entendo isso, claro, mas não vai ser possível ignorar completamente as pessoas com doenças mentais crónicas e doenças agudas. Estão a ser provisoriamente canceladas consultas, mas isto não pode ficar assim a vida inteira. Não acho, ainda assim, que isto passe pela contratação de mais profissionais na área da saúde mental mas sim pelo reforço das equipas comunitárias, formadas por psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais e espalhadas por várias zonas do país. Essa era uma das principais prioridades do Plano Nacional para a Saúde Mental (2007-2016), e a que mais falhou. Uma dessas equipas teve um papel importantíssimo nos fogos de Pedrógão. E, sabendo nós que imensas famílias vão perder pessoas e há outras tantas pessoas que vão sobreviver mas com sequelas, seria muito importante estas equipas poderem contribuir para a recuperação.