Coronavírus

Porto, a cidade está deserta e alguém dissolveu o silêncio em toda a parte

Porto, a cidade está deserta e alguém dissolveu o silêncio em toda a parte
RUI DUARTE SILVA

A Invicta está, por estes dias, recolhida, com pessoas entrincheiradas em casa, resistindo ao cerco de um inimigo invisível. A cidade está deserta e o silêncio das ruas é ruidoso para quem está habituado à azáfama da baixa portuense. O retrato, pintado pelo Expresso, de um Porto onde atracou o vazio

Os ponteiros do relógio da torre dos Paços do Concelho marcam as 10h30 de uma manhã de sol, mas um manto de vazio cobre o Porto. Há um silêncio que se propaga, ensurdecedor e estranho à azáfama natural da Avenida dos Aliados. A cidade está deserta e o vazio inscreveu o medo em toda a parte. Nas lojas, nos poucos carros que circulam, nas pontes, nas ruas, em todo o lado. Para nos lembrar que o surto da Covid-19 é uma doença, para a qual ainda não há cura.

"— Não queremos barulho, mas nós não somos lixo! Somos seres humanos, como toda a gente, feitos de pele, carne e osso."

A voz de Rosa Félix irrompe o silêncio, no exterior da estação de metro da Trindade. A ela juntam-se mais duas dezenas de funcionárias da empresa Iberlim, numa paralisação em protesto contra a falta de condições de trabalho e de segurança. São estas mulheres que, todos os dias, asseguram a limpeza da estação, um trabalho que envolve aproximadamente 80 pessoas. Fazem-no sem luvas, gel desinfetante ou máscaras que as protejam.“Enquanto não nos derem o nosso material de segurança, nós não trabalhamos, até porque isto já não vem de agora. É uma situação que se arrasta e nós continuamos a trabalhar assim, sem nada”, assegura Rosa, de 47 anos, ao Expresso. “Temos o caso de uma colega que está à espera do resultado do [teste]. Só ao final de tarde é que saberemos o que se passa ou não com ela”, relata a funcionária, lembrando que “limpeza pede proteção”. “Nós a trabalhar na Metro do Porto estamos sujeitas a muita coisa. Não sabemos quem passa por nós, nem aquilo em que mexemos”, frisa Rosa Félix. “Foi-nos prometido o envio do material ainda hoje, mas de promessas está o mundo cheio”, acrescenta.

Rui Duarte Silva
Rui Duarte Silva

Vazio está o interior da estação, onde os veículos chegam despidos de gente e de onde vão saindo algumas, poucas, pessoas. Aumento só mesmo na precaução: multiplicam-se as pessoas que por ali passam com uma máscara a tapar os rostos fechados. Uma das pessoas que ali aguarda, segurando uma mala de viagem, é Margarida Teixeira. “Estou a chegar da Irlanda”, conta ao Expresso, e os próximos dias, assegura, “vão ser passados em casa”. O cenário esvaziado e quase fantasmagórico da Invicta não a surpreende. “Lá também estava assim”, descreve a viajante de 60 anos, que confessa sentir “um pouco de receio em usar os transportes públicos neste momento”.

Lá fora, os autocarros passam despojados de passageiros, como é o caso do 202 que segue em direção ao Passeio Alegre. Na paragem, não há ninguém, todos parecem estar por estes dias estacionados em casa.

Atravessando a passadeira, entramos na Farmácia da Trindade, com apenas um par de pessoas a aguardar pelo atendimento. “Máscaras e gel desinfetante já não temos há bastante tempo”, conta a diretora técnica Emília Moreira, uma vez que “não têm chegado em quantidade necessária para aquilo que nos pedem”.“As pessoas não precisam de ter stocks em casa”, enaltece a farmacêutica, que nota “uma quebra em relação a um dia normal”, mas sustenta que “isso também acontece porque a entrada do número de pessoas está a ser limitada”. Apesar de os funcionários tentarem passar a maior e melhor informação possível, “algumas pessoas ainda não percebem a necessidade de afastamento”, e muitas dirigem-se ali “alarmadas com eventuais sintomas, mesmo que não tenham febre”, refere Emília Moreira.

Rui Duarte Silva

“O que vai ser?”, pergunta António Azeredo, atrás do balcão, com apenas três clientes sentados nas mesas à sua frente. É ele o dono do Urca Café Pastelaria, na Rua do Bonjardim, um estabelecimento de portas abertas há 14 anos. Tal como acontece todos os dias, de segunda a sexta, António está a trabalhar desde as 6h30. Mas este não é um dia como os outros. “Hoje estamos com uma quebra de afluência muito grande, com uma redução de 70% dos clientes”, conta o proprietário de 50 anos. “Se esta redução se mantiver, vou fechar e aproveito para fazer umas obras no café”, confidencia.

Dali seguimos para a Rua Santa Catarina, a Meca do comércio da baixa portuense, onde os fiéis são agora muitos escassos, descrentes pelo medo. Várias lojas estão fechadas, com anúncios à porta. Outras vão resistindo, como é o caso da Ricami Verónica, onde Fernanda Rodrigues, agarrada à máquina de costura Cornely, oferece um bordado, feito em menos de minuto, ao Expresso.

É uma forma de chamar os poucos fregueses que por ali passam. “A clientela, nesta altura, está muito mais fraca, até porque vivemos muito dos turistas, sobretudo franceses e alemães”. Entre risos, a costureira de 45 anos, brinca: “Os portugueses são tão certinhos, tão certinhos que estão todos de quarentena”. A boa disposição está sempre cosida nas palavras de Fernanda: “Não viu como nós aqui, no Porto, semos bem comportados quando comparados com Lisboa? Somos bem mandados ou não somos, carago? O povo do Norte é excelente, não há ninguém como nós”. Ainda assim, não esconde a preocupação, sobretudo pelo filho de 13 anos, neste momento sozinho em casa e sem ir à escola. “Não iremos fechar até que alguém nos diga. Temos contas para pagar. Quem é que nos vai pagar as contas?”, interroga.

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Num passo apressado para sair do shopping Via Catarina segue Alexandre Oliveira, com uma máscara a esconder-lhe o rosto. “É para me proteger. Acho que é essencial, para mim e para as pessoas que me rodeiam”, afirma o jovem de 22 anos. “Só aqui vim mesmo por necessidade, porque o meu telemóvel estragou-se. Vim arranjá-lo e vou já para casa”, assegura o estudante de Design e Comunicação na ESAD, atualmente sem aulas, refugiado em casa, juntamente com o pai, “ainda antes de ter sido decretada quarentena”, por considerar que “esta situação é mais grave do que aquilo que temos noção”, defendendo que “já deviam ter fechado as fronteiras há imenso tempo”.

Prestes a encerrar está o Garota da Baixa. “O mais certo é fechar, pelo menos durante uma semana”, admite Vítor Loureiro, que todos os dias chega às 6h da manhã para confecionar o negócio do restaurante localizado na Rua das Flores. “Os clientes habituais quase desapareceram”, nota o proprietário de 49 anos. “Com a histeria à volta deste problema, as pessoas aparecem cada vez menos”, lamenta o dono de uma casa aberta há 10 anos e que dá emprego a cinco trabalhadores. “Vai-se levando. Esperemos que não seja nada”.

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