Conselho Europeu de Investigação atribui 11,5 milhões a quatro projetos portugueses para as ciências da vida
A ciência feita em Portugal bateu recordes nos financiamentos vindos do ERC
A nova vaga de bolsas vai financiar projetos na área da malária, do desenvolvimento das bactérias, da microbiota e da comunicação entre sistemas nervoso e imunitário
O Conselho Europeu de Investigação (ERC) anunciou esta quinta-feira uma nova fornada de financiamento para projetos de investigação na área das ciências da vida. Segundo as quatro entidades de investigação selecionadas, foi fixado um novo recorde na soma dos valores atribuídos a projetos portugueses através deste braço de apoio à ciência da UE. No total, foram anunciadas quatro bolsas avaliadas num total de 11,5 milhões de euros.
Além das bolsas, estes quatro laboratórios de investigação selecionados pelo ERC têm em comum o facto de operarem na área metropolitana de Lisboa. Não há ainda notícia de que outras entidades científicas nacionais tenham sido contempladas por esta vaga de bolsas do ERC para as ciências da vida.
Os quatro projetos vão ser desenvolvidos durante cinco anos por grupos liderados por Mariana Pinho, do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier da Universidade Nova de Lisboa (ITQB); Maria Mota, diretora-executiva do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (IMM); Henrique Veiga Fernandes, da Fundação Champalimaud; e Isabel Gordo, do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC).
Nos projetos apoiados figuram investigações relacionadas com a malária, os microorganismos dos intestinos, os processos de multiplicação de bactérias e a comunicação entre os sistemas imunitário e nervoso. A expectativa de contribuir para uma saúde melhor é grande – mas sem deslumbramentos.
“Se conseguir alcançar os objetivos é apenas mais um passo que se dá na ciência. Uma investigação não acaba com um único projeto. É um pouco como o cálculo do Pi, que está sempre a evoluir ao longo do tempo”, descreve Henrique Veiga Fernandes, cientista da Fundação Chamaplimaud.
O financiamento agora garantido também será útil para o reforço de capacidades. “O nosso grupo tem 12 investigadores, mas admitimos usar esta bolsa também para contratar mais pessoas”, refere Mariana Pinho, investigadora do ITQB.
Afinal, em que consiste cada um dos quatro projetos?
Isabel Gordo, investigadora do Instituto
Pedro Zenkl
Isabel Gordo, Instituto Gulbenkian de Ciência
Bolsa ERC: 2,5 milhões de euros
Quantas meias horas têm cinco anos? A questão pode revelar-se providencial para o trabalho que a equipa liderada por Isabel Gordo vai desenvolver nos próximos anos. “Em média, as bactérias dividem-se (replicam-se) a cada meia hora que passa. Logo, em cinco anos conseguimos observar milhares de gerações de bactérias. E podemos observar a evolução dessas espécies em tempo real”, acrescenta a líder do Grupo de Biologia Evolutiva do IGC.
Os cinco anos são também o tempo necessário para um ratinho de laboratório passar de jovem a idoso – e são o tempo necessário para apurar como evoluem as interações das bactérias que compõem a microbiota dos intestinos destes roedores. Os resultados podem ser auspiciosos no que toca à saúde, mas implicam um daqueles trabalhos que alguém tem de fazer – e que consiste na análise de fezes.
Com estas análises rotineiras, os investigadores do IGC ficam em condições de saber se todas “as espécies de bactérias mudam da mesma maneira ao longo do tempo” ou “se interpretam todas da mesma forma o processo de envelhecimento do ratinho hospedeiro”.
A área de estudo remete para os biliões de elementos pertencentes a centenas de espécimes de bactérias, que têm papel determinante para absorção de nutrientes e também para a prevenção de doenças. Para conhecer a evolução destas bactérias, Isabel Gordo conta recorrer aos mais recentes equipamentos de sequenciação de ADN, para apurar “se há ou não mutações” que refletem uma adaptação às alterações que os intestinos vão refletindo com a idade.
Os ensaios vão ser levados a cabo com ratinhos saudáveis, ratinhos geneticamente alterados que sofrem de doenças inflamatórias do intestino e ratinhos obesos. “A nossa expectativa é conseguir ver a partir das bactérias se o ratinho (hospedeiro) está saudável, gordo ou doente”, refere a cientista do IGC.
Isabel Gordo sabe que muitas pessoas ainda sentem renitência quando o médico prescreve análises de fezes, mas mantém a expectativa de que possa contribuir para a mudança de mentalidades e para a evolução deste tipo de método de diagnóstico – assim como de dietas que podem ajudar a prevenir doenças.
Atualmente conta com 49 anos de idade. Iniciou o percurso académico no curso de Física do Instituto Superior Técnico (IST). Com o apoio da Gulbenkian tirou o doutoramento de biologia evolutiva na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Em 2002, regressou para Portugal para entrar nos quadros do IGC.
“É importante as pessoas perceberem que têm dentro de si um conjunto de organismos riquíssimo que está em evolução. Se tentássemos ser o Charles Darwin nos dias que correm iríamos passar a olhar para dentro de nós”, diz.
Mariana Pinho, investigadora do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier da Universidade Nova de Lisboa
Mulheres na Ciência, Ciência Viva / Clara Azevedo
Mariana Pinho, investigadora do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier
Bolsa ERC: três milhões de euros
O que para a maioria das pessoas é uma multiplicação tende a ser apresentado como uma divisão por cientistas da área da biologia celular, como Mariana Pinho. E há uma razão plausível para isso: as células dividem-se no processo de reprodução. Resultado: há uma divisão, mas há também um aumento de população.
Se as células em causa forem bactérias nefastas, a multiplicação pode assumir contornos menos animadores. E se for uma bactéria Staphylococcus aureus, que figura na lista dos organismos mais resistentes a antibiuóicos, cria-se um cenário que pode tornar-se fatal – mas não é isso que impede a equipa de investigadores do ITQB de observar mais de perto os micro-organismos com um micrómetro de diâmetro (1 micrómetro é um milésimo de um milímetro).
“O principal motivo deste projeto remete para a importância clínica, mas há ainda mais uma razão a ter em conta: esta bactéria é redonda e pode ser observada facilmente de qualquer ângulo num microscópio”, explica a investigadora do ITQB.
Durante os cinco anos de bolsa, os cientistas do ITQB vão tentar saber quais os processos usados pela ameaçadora bactéria para se multiplicar (ou dividir-se). Com este processo de observação, os investigadores contam detetar momentos e mecanismos que poderão ser usados como vulnerabilidades que podem ser usadas para aumentar a eficácia de antibióticos.
Essa informação, que pode ser usada para identificar alvos a “atacar” pelos antibióticos, deverá ser obtida a partir do estudo do cromossoma e das paredes das bactérias. O estudo da Staphylococcus aureus também poderá ser aplicado mais tarde a outras bactérias. “Há muitos processos ancestrais que estão presentes em várias espécies de bactérias”, refere Mariana Pinho.
A chegada ao ITQB representa, de algum modo, um regresso à casa de partida. Foi na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa que Mariana Pinho se formou em química aplicada, por ser a única forma de se estudar biologia molecular no final do século passado. Depois foi para os EUA para um doutoramento na Universidade Rockefeller, e começou “a trabalhar com os antibióticos”. Também foi em inglês que chegou à Universidade de Oxford, em Inglaterra, para fazer o pós doutoramento – desta vez, já centrado em biologia celular bacteriana.
Em 2006, voltou à “Nova”, como professora e investigadora do ITQB. Tem 50 anos de idade e não esquece a influência exercida por Hermínia de Lencastre. A par da ciência também houve que levar a vida para a frente. “A minha primeira filha nasceu em Nova Iorque, a segunda em Oxford e a terceira em Lisboa. É uma prova de que é possível ter filhos ao mesmo tempo que se consegue a realização através da carreira”, lembra.
Maria Mota, investigadora e diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Gonçalo Ribeiro - iMM
Maria Mota, IMM
Bolsa ERC: 2,5 milhões de euros
O parasita plasmodium já tem má fama suficiente por matar uma criança a cada minuto que passa, mas também poderia ser comparado a um mutante com grande capacidade de dissimulação. Começa por ser veiculado por mosquitos e mal se apanha no sangue instala-se no fígado e multiplica-se a uma taxa elevada durante uma semana sem grandes sintomas. Até que a doença ocorre, sem grande margem para dúvida. Que doença? Malária.
Maria Mota, investigadora e diretora executiva do IMM, com currículo no tema, tem agora um novo desafio pela frente: “A nossa equipa não vai desenvolver um fármaco para a malária, mas tem o objetivo de conhecer bem a variabilidade do plasmodium e ajudar a desenhar estratégias racionais que poderão ajudar a vencê-lo”, explica. “Este trabalho também poderá ajudar a perceber porque é que há estratégias de prevenção da malária que falham”, acrescenta.
Com 10 micrómetros de comprimento e um micrómetro de largura, o Plasmodium distingue-se pela introdução de “erros” no ADN à medida que replica. O que alarga as probabilidades de variação dos espécimes vindouros, tendo em conta que já estão identificadas cinco espécies, e milhares de estirpes identificadas. O ADN de uma célula está diretamente ligado à proteínas produzidas por uma célula. “E por isso a variabilidade do ADN vai refletir-se não só na composição do parasita, mas também das proteínas que produz”, explica Maria Mota. Com o conhecimento dos mecanismos de alteração do ADN, a equipa liderada por Maria Mota acredita ficar em condições de apurar os estratagemas que levam o plasmodium a escapar às defesas internas dos humanos, através da produção de proteínas que eventualmente o sistema imunitário deixa de reconhecer. “É como se de súbito alguém mudasse de casaco ou de fisionomia e deixasse de ser reconhecido”, diz em jeito de metáfora.
Com 51 anos, iniciou o percurso académico com licenciatura e mestrado na Universidade do Porto, para depois rumar à Universidade de Londres e doutorar-se em parasitologia. Em 2002 ingressou no IGC e em 2005 muda-se para IMM, onde passa a liderar um grupo de investigação. “Sempre gostei de observar a vida ao microscópio”, diz sobre a vocação.
Henrique Veiga Fernandes, investigador da Fundação Champalimaud
Alexandre Azinheira - Fundação Champalimaud
Henrique Veiga-Fernandes, Fundação Champalimaud
Bolsa ERC: 3,5 milhões de euros
A Fundação Champalimaud até poderá não ser o nome mais óbvio para uma editora, mas Henrique Veiga-Fernandes está apostado em criar algo que pode ser comparável a um dicionário. Só que, em vez de sinónimos e descrições de palavras, o trabalho do coordenador do grupo de investigação de imunofisiologia dos cientistas da Champalimaud pretende encontrar forma de apurar os significados de sinais químicos e eventualmente elétricos que vão sendo trocados entre glóbulos brancos, que compõem o sistema imunitário, e os neurónios que percorrem o sistema nervoso.
“Os glóbulos brancos estão sempre em comunicação com as células dos diferentes órgãos do corpo. Essa comunicação influencia a forma como um ser vivo extrai lípidos ou processa hidratos de carbono nos intestinos, mas também pode ser muito importante para prevenir infeções ou um cancro colo-retal”, refere o cientista da Champalimaud. Tendo em conta que há glóbulos brancos em todos tecidos e órgãos do corpo e possivelmente comunicam de forma diferente com as células presentes em cada um dos cenários, a equipa liderada por Veiga Fernandes pretende incidir o estudo nos sistemas imunitário e sistema nervoso que se sabe estarem presentes em todo o corpo.
Através deste processo, os investigadores acreditam ficar em posição de decifrarem os diferentes “dialetos” usados pelos glóbulos brancos para comunicar com os vários tipos de células. “Estes sistemas recebem informação de toda a parte do corpo e vão desencadear ações nos diferentes órgãos, mesmo quando não há infeções ou cancro”, refere o investigador para depois recorrer a uma metáfora bélica: “Num caso de guerra a uma infeção não basta matar o inimigo (um micro-organismo patogénico); há que reconstruir os estragos. No fundo, é como a reconstrução de um país invadido, mas que na realidade tem como resultado pôr um pulmão a respirar, um coração a bombear o sangue ou o intestino a absorver nutrientes de forma eficaz”. As interações patológicas também já estão devidamente estudadas: “sempre que há uma disrupção nestas interações (entre sistemas imunitário e nervoso) desenvolvemos doenças”, recorda.
Nascido em Viseu, Henrique Veiga Fernandes começou por estudar veterinária nas Universidades de Lisboa e Milão, para posteriormente seguir para a Universidade de René Descartes, em Paris, e fazer o doutoramento em biologia molecular. Terminada esta graduação ingressa no Instituto Nacional de Investigação Médica de Londres, Reino Unido, onde inicia pós doutoramento. Recorda as ofertas de trabalho que recebeu de Oxford e Cambridge, mas optou por regressar a Portugal para acumular sucesso e bolsas do ERC no IGC. Em 2016, muda-se para a Fundação Champalimaud. Tem 50 anos e tem pela frente o desafio de decifrar centenas ou mesmo milhares de “dialetos” usados entre sistemas imunitário e nervoso. “A ciência é um esforço universal. Não é algo que um laboratório possa fazer de forma isolada”, recorda.
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