Ciência

Fundação Champalimaud arranca com programa para mudar comportamentos menos saudáveis através das tecnologias

Joe Paton, diretor do programa de neurociências da Fundação Champalimaud, mantém a expectativa de usar as tecnologias como ferramentas que, em vez do sedentarismo, promovem comportamentos saudáveis
Joe Paton, diretor do programa de neurociências da Fundação Champalimaud, mantém a expectativa de usar as tecnologias como ferramentas que, em vez do sedentarismo, promovem comportamentos saudáveis
NUNO BOTELHO

A Fundação Champalimaud arranca esta sexta-feira com um novo programa de investigação que pretende desenvolver tecnologias que estimulam comportamentos mais saudáveis

Todos os dias um homem de meia idade sente uma tentação por um par de cervejas ao final da tarde. Possivelmente não há tecnologia que mude esse comportamento pouco abonatório para os níveis de colesterol, mas se depender de Joe Paton já não deverá demorar muito até que a Fundação Champalimaud comece a desenvolver tecnologias que fomentam a alteração de hábitos e cenários em abono da saúde ou do bem-estar. Um novo programa especializado em Neuroecologia Humana e Tecnologia Digital arranca esta sexta-feira com uma mostra que mistura arte e ciência numa antiga lota da Docapesca, em Lisboa, que vai ser transformada, nos próximos meses, em laboratório científico.

“Há que perceber porque é que as pessoas tomam certas decisões associadas a certos comportamentos e desenvolver protocolos mais indicados para esses comportamentos”, descreve Joe Paton, diretor do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud.

O termo "protocolo" é usado pelo cientista para descrever ferramentas tão corriqueiras como apps ou videojogos, ou tecnologias mais sofisticadas de realidade virtual ou aumentada. “A ideia é que, através de um protocolo deste género, se consiga levar essa pessoa que bebe duas cervejas todos os dias a beber apenas as duas cervejas uma vez por semana”, exemplifica o investigador. O uso de tecnologias digitais como forma de influenciar comportamentos e gerar novas terapias não é inédito, apesar de estar bem longe da vulgarização. Joe Paton recorda que, em alguns lares e hospitais americanos, já há quem use tecnologias de realidade virtual com idosos que sofrem de demência com imagens que lhes são familiares. Também nos EUA, a Administração da Comida e do Medicamento (FDA) aprovou recentemente o uso de tecnologias com gadgets já vulgarizados para o tratamento de toxicodependentes e ou mitigação de dores crónicas.

O novo programa de investigação da Champalimaud arranca com uma mostra de projetos desenvolvidos em parceria entre artistas e cientistas
NUNO BOTELHO

Em Portugal, o neurologista John Krakauer, que também pertence aos quadros da Fundação Champalimaud, tem vindo a testar videojogos no Campus Neurológico Sénior, de Torres Vedras. Noutros pontos do País, já surgiram as primeiras clínicas especializadas no tratamento de diferentes fobias através de videojogos ou cenários virtuais.

“O foco está no cérebro. A nossa ideia é conseguir transformar a saúde em geral, através do nosso comportamento, que sabemos que tem origem no cérebro, e influencia o funcionamento dos restantes órgãos”, acrescenta o investigador americano, que se mudou de armas e bagagens para a Fundação Champalimaud, na primeira década do século.

Joe Paton aponta ao Facebook como exemplo do potencial das tecnologias enquanto fator de mudança comportamental. O neurocientista recorda que a maior das redes sociais usa técnicas que permitem recolher dados das pessoas à medida que indicam o que gostam ou não (com os “likes”), para assim descobrir a forma de aumentar o tempo de uso. “Queremos usar ingredientes similares (aos do Facebook e de outras plataformas tecnológicas) de uma maneira que promove a saúde, a longevidade e a resiliência”, responde Joe Paton.

Ao sucesso das técnicas usadas pelas redes sociais juntam-se ainda os relatórios que dão conta de que os ratinhos de laboratório revelaram maior probabilidade de recuperação até 100% das capacidades perdidas após um acidente vascular cerebral (AVC) quando, em vez de uma recuperação em repouso imobilizado, enveredam pela retoma de atividade, logo a seguir à ocorrência.

As mitocôndrias, os “geradores” de energia das células humanas, figuram noutro dos exemplos dados pelo neurocientista relativamente aos benefícios de uma vida ativa, mas não stressante. Esta parte celular é composta por 37 genes – e 19 reagem de forma benéfica quando os humanos fazem exercício

Paton lembra que o cérebro é determinante para gerar uma abordagem coordenada que tem em conta não só os fatores fisiológicos, como também fatores sociais ou psicológicos. E por isso as novas ferramentas digitais deverão tentar estimular positivamente a adoção de planos de treino, dietas saudáveis ou rotinas que reduzem o stress. O investigador admite que uma mudança de 10% dos comportamentos menos saudáveis logo garante benefícios avultados para saúde da população. “Os medicamentos são imprescindíveis, mas isso não nos impede de estudar formas de gerar impacto na biologia humana de uma forma coordenada”, sublinha.

A nova linha de investigação da Fundação Champalimaud vai ocupar uma lota da Docapesca que vai ser reformulada nos próximos meses
NUNO BOTELHO

O investigador não fixa datas para o lançamento da nova geração de ferramentas que vierem a ser desenvolvidas pelos cientistas da Fundação Champalimaud, mas admite que o processo de certificação médica seja menos exigente que nos dispositivos médicos, uma vez que apenas pretendem fomentar experiências junto dos pacientes – desde que haja dados suficientes. O que nem sempre é fácil de garantir, devido às limitações técnicas e legais da atualidade. “Não queremos criar um big brother; queremos fomentar a colaboração com médicos e com pacientes”, refere Joe Paton.

De lota a laboratório

O primeiro dia do resto da vida da nova linha de investigação vai ficar marcado com a exposição de trabalhos que recorrem à captação de movimentos do corpo e a interação com cenários de realidade virtual, bem como jogos que propiciam movimentos ou ações que poderão ser vantajosas para prevenir ou tratar doenças.

Os trabalhos expostos resultam de parcerias entre cientistas e artistas e pretendem fazer a ponte entre as tecnologias que, hoje, através da TV, da consola ou do telemóvel têm contribuído para uma vida sedentária, e uma nova abordagem que pretende usar estas tecnologias como incentivo à mudança de hábitos.

Para desbravar o novo campo de investigação, a Fundação Champalimaud vai dar início à reformulação da antiga lota num conjunto de laboratórios de desenvolvimento de tecnologias que podem ser usadas para influenciar comportamentos, e também áreas especializadas no tratamento clínico.

Prevê-se que os três primeiros espaços laboratoriais fiquem concluídos até ao final de 2022 – mas essa será apenas parte do plano de reformulação previsto para todo o espaço que em tempos pertenceu à Docapesca, e que agora tem como objetivo desbravar o cérebro humano.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: senecahugo@gmail.com

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