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“Drogas cada vez mais potentes e desconhecidas”: serviço pioneiro de análise forense avança no país

“Drogas cada vez mais potentes e desconhecidas”: serviço pioneiro de análise forense avança no país
Matilde Fieschi

A Egas Moniz School of Health & Science, através dos seus laboratórios, e a ONG Kosmicare uniram-se para lançar o primeiro serviço de “drug checking” com análise forense avançada em Portugal. A iniciativa utiliza tecnologia de alta precisão para identificar adulterantes perigosos, novas substâncias psicoativas e mapear o que circula no mercado ilegal

“Drogas cada vez mais potentes e desconhecidas”: serviço pioneiro de análise forense avança no país

Helena Bento

Jornalista

“Drogas cada vez mais potentes e desconhecidas”: serviço pioneiro de análise forense avança no país

Matilde Fieschi

Fotojornalista

A sala estende-se ao comprido, estreita e pequena. De um lado, há uma fileira de janelas voltadas para o exterior e, do outro, painéis envidraçados que a separam do laboratório vizinho. O espaço dispensa grandes luxos e aparatos, bastando-lhe o essencial: uma longa bancada de trabalho, onde estão dispostos microtubos, frascos de plástico, micropipetas, um computador e cadeiras de plástico. Numa das paredes, um armário suspenso, com portas de vidro, exibe dezenas de frascos de reagentes químicos, etiquetados e organizados. O espaço é assim, quase espartano, mas essa simplicidade nada diz sobre o que aqui acontece: é que em cima da bancada está também uma máquina de alta tecnologia — um cromatógrafo, capaz de realizar análises forenses precisas a substâncias psicoativas — semelhante às usadas pela Polícia Judiciária e pelo Instituto Nacional de Medicina Legal nos seus testes toxicológicos. 

É com este equipamento que uma equipa de investigadores e estudantes da área das ciências forenses da Egas Moniz School of Health & Science, em Almada, tem conseguido analisar substâncias com grande rigor e precisão, detetando adulterantes tóxicos, identificando novas drogas sintéticas e ajudando a perceber o que realmente circula no mercado informal. O trabalho decorre ao abrigo de um protocolo recente com a Kosmicare, uma ONG de redução de riscos que, entre outras atividades, disponibiliza serviços de “drug checking”, permitindo a qualquer pessoa que consome drogas testar amostras, saber exatamente o que contêm e se estão adulteradas, e, assim, reduzir os perigos associados ao consumo.

Alexandre Quintas, professor e diretor do Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas da Egas Moniz School of Health & Science
Matilde Fieschi

Alexandre Quintas, professor, diretor dos dois laboratórios envolvidos no projeto — o Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas e o Laboratório de Investigação em Bioquímica Forense — e principal impulsionador da iniciativa, sublinha que este projeto de criação do primeiro serviço de “drug checking” com análise forense avançada em Portugal permite, além de aprofundar a investigação sobre novas substâncias psicoativas, conhecer melhor os produtos em circulação e os seus riscos. “Trata-se, no fundo, de proteger a saúde das pessoas”, afirma.

Há cerca de quatro anos, a equipa detetou, pela primeira vez em Portugal, uma substância chamada etonitazeno; trata-se de um opioide sintético da classe dos nitazenos, que podem ser até 500 vezes mais potentes do que a heroína; estas substâncias têm estado associadas a um número crescente de overdoses na Europa e são hoje consideradas uma das maiores ameaças emergentes no contexto europeu das drogas. Mais recentemente, a equipa recebeu uma amostra, ainda em análise, que suspeita ser uma nova catinona sintética, uma substância estimulante com efeitos semelhantes aos das anfetaminas. Estas substâncias também têm preocupado as autoridades europeias, devido à sua rápida disseminação e efeitos imprevisíveis.

Aos dois laboratórios da faculdade chegam amostras de cocaína, anfetaminas, MDMA (ecstasy), heroína e opioides sintéticos que a Kosmicare, por ser uma estrutura pequena e com recursos limitados, não tem capacidade para testar. São também encaminhadas amostras sobre as quais existem dúvidas quanto à composição. Os resultados são depois enviados de volta à ONG, que os transmite aos utilizadores no seu espaço de “drug checking”, em Lisboa. Desde o arranque do projeto, no início do ano, já foram analisadas mais de 250 amostras.

A cocaína é a droga mais frequentemente identificada, e foi precisamente com uma amostra desta substância que a equipa nos demonstrou o processo completo de análise no cromatógrafo, numa das salas alocadas ao projeto. Em cerca de 20 minutos, o tempo habitual para realizar este tipo de testes, confirmou-se que o pó era praticamente puro, sem quaisquer adulterantes. Não é, porém, o caso de outras amostras de cocaína e heroína analisadas, que se percebe estarem muitas vezes misturadas com substâncias de baixo risco, como cafeína e paracetamol, mas também com compostos mais perigosos, como a fenacetina e o levamisol, ambos banidos em vários países devido à sua elevada toxicidade e potencial para causar efeitos graves ou mesmo fatais.

Matilde Fieschi

"Mais drogas novas e extremamente potentes"

Além da adulteração, o que mais preocupa Alexandre Quintas é o surgimento constante de novas drogas sintéticas no mercado, que têm “efeitos semelhantes aos de substâncias controladas, mas cuja toxicidade e impacto no organismo ainda não estão suficientemente estudados”, alerta. Daí a importância de serviços como este. “Qualquer meio que reduza a exposição da sociedade a estas substâncias já é, por si só, uma mais-valia.”

Essa preocupação é partilhada por Daniel Martins, um dos coordenadores executivos da Kosmicare. A organização e a Polícia Judiciária são as únicas entidades em Portugal que reportam ao Sistema Europeu de Alerta Rápido, um mecanismo que permite partilhar, em tempo real, informações sobre novas substâncias psicoativas detetadas em qualquer país da União Europeia. Segundo o responsável, o maior problema atualmente é a combinação entre a elevada pureza de muitas substâncias e a total ausência de informação, tanto por parte dos consumidores como dos próprios profissionais de saúde. “Estão a surgir cada vez mais compostos novos, extremamente potentes. E o grande risco é que nem quem os consome, nem os técnicos de saúde ou os investigadores sabem ao certo quais os seus efeitos imediatos ou os perigos a médio e longo prazo”, alerta. “O mercado ilegal de drogas é uma autêntica roleta russa, tanto no tipo de substância, como na composição química ou na dosagem.” 

O coordenador recorda que, há cerca de cinco anos, a Kosmicare analisou comprimidos de MDMA recolhidos num festival com uma dose quatro vezes superior à considerada segura para consumo numa só noite. “O risco de overdose é enorme, sobretudo para pessoas jovens que nunca tiveram contacto com este tipo de substância.” E acrescenta: “Há muita gente nova a experimentar drogas porque viu um documentário na Netflix ou leu qualquer coisa sobre psicadélicos.”

Matilde Fieschi

Na origem do surgimento constante de novas substâncias está, segundo Daniel Martins, a pressão exercida pelas autoridades sobre o mercado ilegal. “Sempre que uma droga é proibida, surgem rapidamente alternativas. Estas são depois identificadas, analisadas e eventualmente banidas, mas, nesse intervalo, muitas outras já entraram em circulação.”

Nesta corrida sem fim entre autoridades e produtores, estes últimos acabam frequentemente por levar vantagem. Aperfeiçoam os seus métodos, desenvolvem processos cada vez mais rápidos e sofisticados, e colocam no mercado substâncias em quantidades maiores e com uma potência cada vez mais elevada. “Haverá uma tendência cada vez maior da tecnologia, seja ao nível da produção, seja ao nível da partilha de informação, para criar substâncias mais potentes.” O coordenador dá como exemplo compostos como o fentanil e os nitazenos, “que são extremamente potentes, mais fáceis de produzir do que drogas derivadas de plantas, como a cocaína, e muito mais difíceis de controlar”. No fim desta cadeia está o consumidor, que sofre diretamente as consequências. “Ninguém quer consumir drogas desconhecidas, ninguém quer correr esse risco. Mas, muitas vezes, acabam por fazê-lo porque as substâncias mais clássicas estão menos disponíveis.”

É por isso essencial garantir uma “forte monitorização do mercado em tempo real”, algo que a parceria entre a Kosmicare e os laboratórios da Egas Moniz School of Health & Science torna possível, sublinha Daniel Martins. “A monitorização permite detetar precocemente a introdução de novas substâncias e disponibilizar informação atempada aos utilizadores.” O objetivo, explica, “é que as pessoas tenham acesso a toda a informação necessária para saberem o que têm à sua frente, esclarecerem dúvidas, perceberem os potenciais riscos e, ao mesmo tempo, poderem aceder a outros serviços”. Esses serviços fazem parte do trabalho habitual da Kosmicare, que, além do apoio direto em contexto de “drug checking”, assegura também o encaminhamento de pessoas para consultas na própria organização, para apoio prestado por outras ONG ou para estruturas do Estado na área da saúde. “Muitas pessoas dizem que não têm um consumo problemático de droga, mas que gostariam de ter apoio para diminuir esses consumos.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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