Richard O’Barry: “Existem 35 golfinhos em Portugal. Nenhum pode ser libertado, mas todos podem ser transferidos para habitats mais naturais”
TIAGO MIRANDA
Ativista norte-americano está em Portugal a convite da provedora do animal para alertar para a necessidade de melhorar o bem-estar dos cetáceos em cativeiro
“Eu era o treinador de golfinhos mais bem pago do mundo. Abandonei isso. Eu podia sair desta sala, apanhar o avião para as Bahamas e começar um programa de nadar com golfinhos. Podia fazer cinco milhões por ano se quisesse. Mas afastei-me disso.”
Nos primeiros dez anos da sua carreira, Richard O’Barry trabalhou na indústria dos golfinhos em cativeiro. Durante a década de 1960, empregado pelo Miami Seaquarium, o norte-americano natural da Flórida ajudou a capturar e a treinar dezenas de animais. A sua reputação era tal, que foi o escolhido para treinar os cinco golfinhos que davam vida a Flipper, a personagem da série com o mesmo nome exibida pela NBC entre 1964 e 1967.
O programa foi um fenómeno. Durante estes anos, Ric O’Barry (alcunha pela qual é mais conhecido) viveu com estes animais, treinou-os para as acrobacias necessárias e acompanhou-os aos locais mais inesperados. “Eu costumava levar o Flipper a jogos de futebol numa carrinha. [Flipper foi a mascote da equipa de futebol americano Miami Dolphins entre 1966 e 1968.] Isto é o quão estúpido os anos 60 foram.”
Tudo mudou em 1970. Kathy, uma das cinco fémeas que davam vida a Flipper, morreu nos seus braços. “Fiquei tão zangado, porque ela não tinha de morrer”, recorda. “Aprendi imenso. E quando se aprende estas coisas e não se faz nada, não se consegue dormir à noite.”
O incidente catapultou-o para o outro lado da barricada. Partiu para Bimini, nas Bahamas, para tentar libertar um golfinho chamado Charlie Brown (um de quatro que tinha ajudado a capturar anos antes para o Lerner Marine Lab, o único que ainda era vivo). Não conseguiu. Foi a primeira (de várias vezes) que foi preso.
Próximo de algumas das figuras mais marcantes da cena cultural da altura, conseguiu uma atenção mediática que ajudou a resolver o caso. Uma semana depois, pagou uma multa de cinco dólares por invasão de propriedade e regressou aos EUA. Mas Ric O’Barry não parou mais.
Nas últimas cinco décadas resgatou e reabilitou golfinhos por todo o mundo. Fundou a Dolphin Project, que está por detrás do primeiro e único santuário para golfinhos (a funcionar na Indonésia). Protagonizando o documentário The Cove (vencedor do Óscar de melhor documentário), denunciou como a chacina cometida na caça anual em Taiji, no Japão, é o “grau zero” da indústria dos golfinhos em cativeiro.
Hoje, aos 82 anos, continua a ser um ativista e uma voz ativa em campanhas contra o cativeiro e caça destes animais em todo o mundo. É neste contexto que está em Portugal, a convite da Provedora do Animal, para participar este sábado num evento de consciencialização.
“Para os golfinhos, o cativeiro é mais stressante do que para qualquer outro animal”
Imagine ir para um quarto num hotel de luxo, mas ter de ficar neste espaço de poucos metros para o resto da vida. Por muito boas que as condições fossem, a certa altura ia querer sair dali.
Para os cetáceos, esta é a realidade de viver num tanque, denuncia Richard O’Barry. “Para os golfinhos, viver em cativeiro é mais stressante do que para qualquer outro animal. É o único animal em todo o zoo que tem de fazer truques em troca de comida. Os únicos que vivem num estádio, como gladiadores.”
Para outras espécies, há um cuidado dos parques zoológicos para aproximar o recinto aos seus habitats naturais. “Olhemos para o reptilário. As serpentes podem subir a árvores, esconder-se debaixo de pedras, ir para a relva. Mas se pusermos uma máscara de mergulho e olharmos para debaixo de água num tanque de golfinhos não existe nada lá. É como uma sala completamente vazia. É privação sensorial.”
Na natureza, um golfinho pode nadar entre 40 a 200 quilómetros por dia, atingir velocidades de 50 quilómetros por hora e mergulhar a profundidades entre 500 e 1000 metros. Em Portugal, o maior tanque é o do Jardim Zoológico de Lisboa. Tem 400 metros quadrados.
Existem 35 golfinhos em Portugal, a maioria nascidos em cativeiro. São todos golfinhos-roazes (a espécie mais comum no mundo)
Stuart Westmorland
“Estamos a falar do animal mais inteligente dos oceanos, que pode viver até aos 50 anos. É um animal que tem características muito especiais de ser senciente (isto é, sente como nós, sente perda e dor, tem medo). Têm laços familiares extremamente próximos e trabalham em conjunto com a sua comunidade, [por exemplo para] caçar”, explica a Provedora do Animal.
Tudo isto se torna impossível em cativeiro e leva Laurentina Pedroso a defender que é urgente melhorar o bem estar destes animais. “Se há uns anos aquilo que moveu muitas pessoas a questionar isto eram motivos éticos, hoje os motivos pelos quais nós não devemos continuar a manter os animais nestas circunstâncias são baseados na ciência. Nós temos conhecimento [científico que mostra] que não é bom para o bem-estar destas espécies serem mantidos da forma em que estão.”
E sublinha: “Nós temos a perceção de que um golfinho está a rir e tem um ar feliz, mas os golfinhos não conseguem ter expressão facial como nós humanos. Aquele ‘sorriso’ que nós percecionamos é simplesmente uma fisionomia própria resultante da sua adaptação de milhões de anos por serem caçadores natos.” É, como expõe Ric O’Barry, uma “ilusão ótica”.
“Não chega parar com os espetáculos” se não existem soluções criadas
Segundo a World Animal Protection, existem cerca de três mil golfinhos em cativeiro em todo o mundo. Na União Europeia, os números mais recentes dão conta de 308 animais em 34 delfinários espalhados por 14 países. Portugal tem 35 golfinhos-roazes (a espécie mais comum), 27 no Zoomarine e 8 no Jardim Zoológico de Lisboa.
A lei europeia já oferece alguma proteção contra a captura e exportação destas espécies. E há até países que já tomaram medidas para fasear o fim das espécies em cativeiro. França e Canadá, por exemplo, proibiram os espetáculos, mas isto, argumenta Laurentina Pedroso, não é suficiente.
“Nós não podemos passar do oito para o oitenta como os outros países fizeram muitas vezes. Isto não chega. Não chega parar com os espetáculos e dizer que os animais têm que ir para um santuário, se ninguém se está a mexer para fazer os santuários.”
É preciso pensar em soluções para os animais já em cativeiro, em vez de assumir que permaneceram nestas condições até ao final das suas vidas (que no caso dos golfinhos pode chegar aos 50 anos). Só que isto é complexo. “Existem 35 golfinhos em Portugal. Nenhum pode ser libertado, mas todos os animais podem ser transferidos para habitats mais naturais. Podemos melhorar a sua qualidade de vida”, afirma Richard O’Barry.
A solução proposta pela Provedora do Animal passa pela criação de verdadeiros santuários, zonas protegidas no mar que permitem “ter o animal em situações próximas daquilo que é o seu habitat natural”.
“Estes animais não podem ser introduzidos de uma forma ligeira, porque muitos deles já nasceram em cativeiro. Não sabem caçar, estão habituados a comer peixe morto. Estão dependentes dos seus treinadores. Colocá-los num lugar aberto no mar não é possível. Então, estes santuários são estruturas transitórias para alguns animais, que poderão reunir condições mais tarde para serem libertados ou criar condições para aqueles que não têm possibilidade de voltar ao seu habitat.”
Tudo isto irá demorar vários anos, exigir verbas e necessitar de mudanças da lei. Até lá, defende a provedora, há coisas que podem ser feitas para melhorar o bem-estar dos animais já no imediato.
Laurentina Pedroso defende a proibição da reprodução em cativeiro (para não prolongar mais o problema), da entrada e saída de animais do país e das interações (programas que permitam tirar fotos, fazer festas ou nadar com golfinhos e que exigem que o comportamento deste “animal selvagem” tenha de ser condicionado pelo treino).
Por outro lado, defende a “modernização do conceito de espetáculo para que o animal possa ser exibido, respeitando melhor as suas regras de bem-estar animal”. Isto pode passar por privilegiar exibições em que os animais são mostrados nos seus comportamentos quotidianos (a nadar, a comer) como já acontece com outros animais. E com pequenas adaptações, como deixar de ter colunas de som nos espetáculos em prol de sistemas com auscultadores (como nos museus), uma vez que os golfinhos têm um sistema auditivo dez vezes superior ao humano que faz com que sons altos sejam perturbadores.
Nada disto matará o negócio dos parques zoológicos, garantem. Os golfinhos são tão populares que vão continuar a gerar interesse, acredita Richard O’Barry. E existem soluções tecnológicas para continuar a mostrar estes animais, mesmo que a uma distância que não os importuna, acredita a provedora, que quer juntar Estado, universidades, tratadores e empresas donas dos animais na procura de soluções.
Portugal tem a oportunidade de ser pioneiro, acreditam. “Com a costa que temos, nós podemos liderar a criação destas infraestruturas. Podemos depois fazer a transição dos animais que nós temos nestes locais para essas infraestruturas e quiçá receber de outros países da Europa.”