Prisões em Portugal: sobrelotação, celas exíguas, espaços “degradados”, queixas de agressões e escassez de técnicos de reinserção social
Quase 70% das prisões portuguesas estão com lotação “de alto risco”. As celas são coletivas e pequenas, e há espaços degradados que têm fechar, adverte o Mecanismo Nacional de Prevenção, da Provedoria de Justiça, após visitas a várias prisões em 2022. Cada técnico de reinserção social tem a seu cargo, em média, 54 reclusos, o que dificulta a aplicação de programas de prevenção de reincidência e a reintegração na sociedade
No Livro Branco do Conselho da Europa sobre a sobrelotação das prisões é definido que uma ocupação superior a 90% representa uma “situação de alto risco”. Portugal tem dois terços dos estabelecimentos prisionais (EP) nestas condições - 33 dos 49 -, dos quais 22 ultrapassam a capacidade máxima, revelam os dados anuais da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP). Estas concentram quase dez mil reclusos, ou seja, 75% do total da população prisional. A situação é especialmente preocupante nas prisões menores (de grau médio de complexidade), como Faro (com uma ocupação de 164%), Viana do Castelo (147%), Braga (135%) ou Aveiro (135%), mas também entre as mais populosas, como a do Porto (142%), Lisboa (117%), Caxias (111%) e Coimbra (103%).
A ocupação dos EP e o número de reclusos por alojamento merecem uma advertência especial no relatório anual do Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP), da Provedoria da Justiça, divulgado esta semana. Os peritos visitaram 18 cadeias, das quais cinco tinham ultrapassado a capacidade máxima. “Em todos estes casos, o MNP alertou para os problemas associados à sobrelotação: a diminuição do espaço por pessoa, a falta de privacidade daí decorrente, a impossibilidade de proporcionar atividades ocupacionais a todos os reclusos e o potencial para afetar negativamente o quotidiano prisional e contribuir para uma maior conflitualidade entre os reclusos”, lê-se no documento entregue no Parlamento.
No fim de 2022, Portugal tinha 12.383 reclusos, um número que se aproxima do existente no período pré-pandemia, antes do perdão de penas durante a covid-19, que permitiu a libertação de quase três mil pessoas. Ou seja, em cerca de três anos, a diminuição da população prisional provocada por essa medida excecional diluiu-se. Só entre 2020 e 2022, cresceu 8%, interrompendo uma tendência de descida que se verificava desde 2015.
Segundo o MNP, os reclusos continuam, na sua maioria, a ser alojados em espaços coletivos, como celas partilhadas e camaratas, quando o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais determina que sejam colocados em celas individuais, salvo casos muito excecionais. Mas estas celas representam apenas 25% da lotação total dos EP analisados no relatório. Na prisão de Custóias, por exemplo, não há uma única cela individual para uma lotação de 675 reclusos. Apenas três dos EP visitados (PJ Porto, Monsanto e Vale de Judeus) dispõem de alojamento maioritariamente individual.
Dimensão das celas não cumpre normas internacionais
O relatório aponta irregularidades no que diz respeito ao espaço disponível por alojamento, com vários EP a não cumprirem a área mínima por recluso definida pelo Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Assim acontece em estabelecimentos prisionais como o de Castelo Branco, Caxias, Chaves, Covilhã, Elvas, Setúbal e Viana do Castelo, sendo destacados os EP de Bragança, Montijo e Setúbal, “que alojavam dois reclusos em celas que não cumpriam sequer o espaço mínimo para uma pessoa”.
É necessário, por isso, adotar medidas para “fazer cessar o reiterado incumprimento pelo Estado Português das condições mínimas para um alojamento digno de pessoas reclusas”, alerta o MNP. O organismo recorda o apelo feito pelo Subcomité para a Prevenção da Tortura ao Governo português no sentido de alargar o uso de medidas alternativas à detenção. São elencados vários exemplos de medidas: regime de permanência na habitação com controlo através de pulseira eletrónica, liberdade condicional, pagamento de fiança (caucão), prestação de trabalho a favor da comunidade ou pena suspensa.
Também ao nível do edificado são necessárias correções, em particular no EP de Tires, Montijo e Vale de Judeus, que apresentam vários espaços "degradados". Em Tires, foi visitada uma camarata com “janelas partidas, sem garantia de impermeabilização contra a chuva ou de isolamento contra baixas temperaturas”. Os autoclismos instalados nas várias casas de banho não funcionam, “sendo necessário recorrer a um balde para o efeito”. Na prisão do Montijo, é a cozinha que se encontra “degradada”, com o “pavimento partido” e “humidade nas paredes e teto”.
Os problemas são de tal modo graves que o MNP recomendou o encerramento temporários destes espaços até à realização das obras. São apontados, ainda assim, casos positivos, como o do EP de Bragança, Castelo Branco, Montijo e Porto, onde foram realizadas obras ou outro tipo de intervenções ao longo de 2022.
Nem todos os EP e Centros Educativos (CE) - também estes foram alvo de visitas em 2022 - dispõem atualmente de um sistema de videovigilância, tendo o MNP recomendado a instalação dos equipamentos em falta. A escassez de técnicos de reeducação nas prisões, que “desempenham uma função essencial à reinserção social", é considerada especialmente preocupante. Cada técnico tem a seu cargo, em média, 54 reclusos. No EP de Lisboa, por exemplo, há apenas 12 profissionais desta área para uma população de 939 reclusos.
O Expresso questionou a DGRSP sobre as falhas apontadas, e as medidas que vão ou estão a ser tomadas para as sanar, mas não foi possível obter uma resposta em tempo útil.
A utilização de meios coercivos nas prisões em Portugal também foi analisada. Dos 82 inquéritos instaurados em 2022, apenas um teve decisão de pronúncia. Cerca de 75% foram arquivados e 20 encontram-se pendentes. Em alguns EP, o “reduzido” número de processos de inquérito por uso de meios coercivos “não pareceu consentâneo com os relatos recebidos de reclusos”, refere o relatório. Em Vale de Judeus, foram recolhidos indícios de que, em alguns casos, poderá não estar a ser cumprida a obrigação de participação de uso de meios coercivos e subsequente abertura de inquérito. Nas visitas aos EP de Chaves, Porto, Vale de judeus e Monsanto, o MNP ouviu relatos de reclusos sobre agressões ou maus-tratos cometidos por guardas prisionais. No Porto, um recluso descreveu uma prática comum a que os guardas alegadamente recorrem: “Levam-nos para a «zona do controlo», que não tem câmaras, e fazem o que querem de nós lá dentro, temos colegas que vêm de lá todos pisados”.
O MNP recebeu alegações de maus-tratos físicos e verbais infligidos por guardas em todos os pavilhões do estabelecimento prisional do Porto. Foram referenciados “insultos gratuitos”, “rusgas sem respeito”, “agressões”, tendo “muitos reclusos” referido que não formalizam uma queixa por medo de represálias. Tanto no Porto como em vários EP do país, as alegações de maus-tratos apresentadas por reclusos não são “tratadas de forma sistematizada”. Em 2022, foram instaurados apenas 26 inquéritos por agressão, um número “bastante reduzido” quando comparado com o volume de alegações de maus tratos que o MNP terá recebido durante as visitas.
Há reclusos que esperam dois anos por uma consulta
Em relação aos cuidados de saúde prestados nas prisões, são destacados aspectos como o horário de toma de medicação para dormir - tendo o MNP recebido “queixas recorrentes” de reclusos sobre a administração desses fármacos num horário considerado desadequado, isto é, ao final do dia, em vez de ser à noite - e o longo tempo de espera para consultas de algumas especialidades. No EP de Caxias, os reclusos chegam a esperar dois anos para ter uma consulta de estomatologia, e em Bragança a falta de médico e de respostas no SNS levaram a que não restasse outra hipótese aos reclusos a não ser recorrer aos serviços privados.
Na área da saúde mental também são apontadas carências. Em 2022, metade dos jovens internados em CE tinham algum tipo de acompanhamento de saúde mental. O relatório destaca os centros de Navarro de Paiva - em que 91% das jovens internadas em 2022 eram acompanhadas por pedopsiquiatra -, Padre António Oliveira (84%) e Bela Vista (80%).
Apesar de terem sido feitos “esforços” pela DGRSP no sentido de reforçar o acompanhamento dos jovens com dificuldades de saúde mental, tanto no interior dos CE como no exterior, “apenas metade dos centros educativos” dispõem de visitas regulares de psiquiatras e pedopsiquiatras, aponta o MNP, defendendo que seja reforçado o número de profissionais em Santo António, Santa Clara e Olivais. Em 2019, foi recomendada à DGRSP a instalação de uma unidade terapêutica para casos agudos de saúde mental, mas a medida não avançou.