Rui Nabeiro (1931-2023), a entrevista: “Nasci pobre, fiz contrabando, tratei bem as pessoas e dormi nas fazendas de café com a rapaziada”

O império de Rui Nabeiro começou a ser construído cedo. As suas raízes encontram-se na época em que via o tio Joaquim saltar a fronteira para fazer contrabando. Desde aí soube que queria estar ligado ao comércio. Nas páginas do livro da vida que agora abre, o Comendador, como é chamado em Campo Maior, relembra a infância de pobreza e os sacrifícios do pai, que o levaram a ser de esquerda. Duas vezes nomeado presidente de Câmara na ditadura, e eleito outras quatro pelo PS (de 1976 a 1985), fez da vila onde nasceu e de onde sempre recusou a sair uma terra próspera. Raramente diz que não a quem lhe pede ajuda e, apesar de considerar que a Delta continuará a ser o que é hoje, recusa a reforma. “Quero sentir o palpitar do coração”.
Lembra-se de quando bebeu o primeiro café a sério, que não fosse cevada nem chicória?
A partir dos meus 14 ou 15 anos, até porque para o aprender a conhecer tem de se experimentar. Em nossa casa já havia um café diferente, o torrefacto que fabricávamos na altura.
Começou a beber café com ou sem açúcar?
Nessa altura, confesso que era com açúcar.
E hoje?
Não ponho nada. Nem no café nem no chá. Tenho um provador, mas sempre que entro na fábrica há um lote à minha espera para eu próprio fazer a prova. Para isso não posso pôr açúcar nem qualquer aditivo.
O açúcar e os doces faziam-no salivar quando era miúdo?
A nossa família era muito humilde e em casa não havia bolos. A minha mãe vinha do campo e nesses tempos quem era a pessoa do campo que fazia bolos? Só por altura do Natal e pouco mais.
Diz que a sua família era humilde. Pode acrescentar-se pobre?
Os meus avós maternos viviam praticamente no sítio onde temos hoje a fábrica, mas numa barraquinha. Viviam os dois do campo. Os meus pais já tiveram uma mercearia proporcionada pelo patrão do meu pai, um lavrador e médico de quem foi motorista durante anos e anos. Chamava-se “Alimentação e Salsicharia Srª Maria Azinhais”. Os meus pais foram extraordinariamente eficazes no equilíbrio da vida da família e puderam proporcionar aos filhos a escola. Muitos não iam — e esses é que eram os verdadeiros pobres.
Os seus pais não tinham ido à escola?
A minha mãe morreu analfabeta, mas era uma pessoa muito inteligente. O meu pai, Manuel, aprendeu a escrever o nome dele na tropa. Foi um oficial que o ajudou, para poder tirar a carta de condução e, assim que saísse da tropa, ir trabalhar para casa do tal médico, cunhado do oficial. Melhor ou pior, nós já tínhamos o nosso sapatinho, mas perto de nós havia muita gente descalça. O meu pai era um sacrificado em casa desse patrão. De noite ficava de guarda a um filho que tinha problemas do foro psiquiátrico, totalmente descontrolado. Havia semanas e meses que não víamos a sombra do meu pai; durante o dia estava com o patrão e à noite tinha aquela responsabilidade.
Fez a quarta classe. Teve pena de não ter continuado?
Ainda hoje tenho. Na nossa terra só tínhamos os quatro anos da instrução primária. Se tivéssemos algumas condições teríamos de ir para Portalegre, Elvas ou Évora. Em casa chegámos a ser sete — cinco filhos mais os pais. Não havia hipóteses de continuar a estudar: nem o mais velho pôde e eu era só o terceiro. Ficámos todos com a quarta classe. Todos fomos bons na escola, mas depois tivemos de parar. As irmãs começaram a fazer um bocado de costura no lar. Mas nenhum de nós foi trabalhar para casa de alguém, nem para o campo. Na minha turma só houve um rapaz que foi para engenharia, em Coimbra, porque tinha lá uns tios professores a viver.
Se lhe fosse dada a hipótese, que curso seguiria?
Fui sempre um homem do comércio, mesmo sem ser comerciante. Quando me iniciei, foi sempre com a ambição do comércio, devido ao pequeno estabelecimento que os meus pais tinham. A indústria só veio a seguir.
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