Sociedade

Coordenador da comissão que analisou abusos sexuais na Igreja diz que são mais de cem os padres abusadores no ativo

Pedopsiquiatra Pedro Strecht
Pedopsiquiatra Pedro Strecht
ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

A lista de padres no ativo que foram denunciados vai ser enviada para a Conferência Episcopal e para a Procuradoria-Geral da República. O psiquiatra Pedro Strecht, que coordenou a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, garante que só o afastamento desses clérigos protegerá futuras vítimas

Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, admite que os padres abusadores ainda no ativo serão “claramente superior a uma centena". O psiquiatra que liderou o estudo português sobre abusos sexuais na Igreja explicou, em entrevista à SIC Notícias, que o número decorre também da descoberta de situações que não foram reportadas à Comissão. Através do cruzamento de dados, de testemunhos e arquivos da Igreja, foi possível chegar ao somatório de casos. Trata-se, segundo o coordenador, de uma percentagem a par das dos países em que estudos semelhantes foram realizados, isto é, “2 a 4% da população ativa de toda a comunidade religiosa de um país”.

A lista de clérigos no ativo, visados pelas denúncias e pelos registos em arquivo, vai ser enviada para a Conferência Episcopal e para a Procuradoria-Geral da República. De acordo com Pedro Strecht, “só o afastamento real em espaço físico funcionará”, já que, “dentro do perfil psicopatológico dos abusadores, há uma óbvia perpetuação” das práticas.

Apesar de se ter manifestado surpreso com a dimensão do problema que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica analisou, Pedro Strecht manifestou ter, “acima de tudo, esperança”, e assumiu: “Não creio que nas hierarquias da Igreja Católica se voltem a repetir os erros do passado.” Até porque, lembra, foi a Conferência Episcopal que pediu o estudo, de forma a poder começar a sarar feridas, com a “convicção de que tudo pode e deve mudar”.

Um trabalho “difícil e desgastante”

Ao fim de um ano de um trabalho “difícil e desgastante”, o coordenador da Comissão que, nesta segunda-feira, deu a conhecer 512 casos de abuso validados (tendo sido, pelo menos, 4815 as crianças abusadas) apela a “tornar o futuro diferente” para “dignificar muito mais a Igreja junto dos seus fiéis e dentro da imagem pública”. A Igreja “pode ter perdido no seu todo”, observa Pedro Strecht, dando como exemplo a maioria das vítimas, que era de católicos praticantes, mas que, depois das situações de abuso, se afasta da Igreja. “Se a Igreja tiver essa capacidade regeneradora, pode ser um momento charneira e de mudança”, analisou o responsável.

“Já não vale a pena dizer que não aconteceu. Aconteceu de uma forma intensa e aconteceu de uma forma dramática.” Mais do que intensa, endémica. O coordenador da comissão considerou que, em algumas décadas e em alguns locais o problema pode até ser considerado “endémico”, como em zonas de seminários, o local mais referido na amostra. E “que não se fique com a ideia de que é apenas um problema que existiu no passado”, pediu o psiquiatra. Um quarto das pessoas incluídas na amostra estudada reporta casos que decorreram desde os anos 1990 até à atualidade, e há ainda um “número imenso” de pessoas que foi vítima de abusos sexuais em criança e nunca os revelaram. Mais de 48% da população que contactou a Comissão nunca tinha falado da situação.

Para o silêncio, Pedro Strecht apresentou duas razões principais: o facto de as vítimas sentirem que não o poderiam fazer em anonimato, sendo que apenas oito pessoas revelaram às 21 comissões diocesanas, durante os seus quatro anos de existência; e o “dilema ético bastante significativo” de as memórias “mexerem emocionalmente com as vítimas”, que pode até acentuar quadros de stress pós-traumático.

Quando questionado sobre se esperava números como aqueles que foram apurados, Pedro Strecht confessou: “Nenhum de nós tinha qualquer ideia sobre isso.” Apesar de haver já estudos relativos a outros países, o trabalho da Comissão “foi como começar num espaço às escuras e ir conhecendo o terreno”.

“Fomos sempre surpreendidos. Muito mais do que pelos números, pelos relatos”

Com a recolha de testemunhos encerrada a 31 de outubro, o trabalho da Comissão centrou-se em mais do que tratamento estatístico, rememora o especialista. “Estivemos olhos nos olhos com vítimas que nos procuraram, conhecemos os seus pais, os seus filhos.” Foram ouvidas histórias de vítimas “tão sós nesse mesmo sofrimento” e que forneceram uma “lição brutal de humanismo”.

E, agora, extinguindo-se nesta segunda-feira a Comissão, faz sentido que uma nova estrutura seja montada para continuar a receber denúncias e aplicar medidas de resolução, frisa o coordenador. “Funcionámos como um porto de abrigo, como um canal de comunicação ativo. Este trabalho foi emocionalmente muito desgastante, mesmo para uma pessoa que é profissional da área, como eu.” O médico de psiquiatria de infância e adolescência não estaria disposto a continuar, por ter ouvido, ao longo de um ano, “adultos em que não deixava de ver, nas suas narrativas e vivências, aquelas crianças”, sem que pudesse ajudar os menores, agora já com a infância perdida.

No entanto, Pedro Strecht aproveitou ainda para fazer um apelo, lembrando que os abusos são “expressivos” no seio das famílias e instituições: os mais velhos devem reforçar a capacidade das crianças para conhecerem noções de intimidade e do seu corpo, e devem estar atentos aos sinais, já que é na família que as crianças revelam, quando revelam, situações de abuso.

Proposta de alargamento da idade para a denúncia

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica pretende que a idade limite em que uma pessoa possa denunciar aquelas situações passe dos 23 para os 30 anos. A ideia foi bem recebida por Marcelo Rebelo de Sousa, referiu Pedro Strecht, que aplaude a medida. “O sofrimento nunca prescreve”, explica. Apesar de a média de idade atual das pessoas abusadas ser mais baixa do que na Alemanha e França (52 anos), e de a maior parte das crianças ter sido abusada entre os dez e os 14 anos, a proposta de alargamento serve para permitir outro tipo de amadurecimento, sustenta o especialista.

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