Sociedade

"Quando o ódio veste farda": 591 polícias praticam crimes nas redes sociais

"Quando o ódio veste farda": 591 polícias praticam crimes nas redes sociais
SIC

591 operacionais da GNR e da PSP praticam crimes de ódio nas redes sociais. Estes representantes das forças de segurança integram uma base de dados a que o Consórcio de Jornalistas de Investigação portugueses, de que fazem parte a SIC e o Expresso, teve acesso. Nas mais de 3000 publicações desta base de dados, os polícias identificados violam a lei e os regulamentos internos das respetivas forças de segurança.

Grande Reportagem, hoje na SIC

Pedro Coelho, Filipe Teles, Paulo Pena

Mário Brites percorre as ruas de Antuérpia, na Bélgica, exibindo confiança. De mãos dadas com Maria, a nova companheira de quem voltou a aproximar-se, 30 anos depois, na última passagem por Portugal, Mário está onde quer estar. “Vim em 2014,” recorda. Depois dos problemas que tive com o polícia Luís Maria, em 2011, percebi que Portugal já não era para mim e decidi imigrar”.

Veio para Antuérpia desafiado por um amigo. “Falso amigo”, retifica. “Prometeu-me um emprego, mas quando cheguei, desapareceu. Tive de me desenrascar”, conclui.

Em Portugal vivia em casa emprestada, mas a miséria insistia em bater-lhe à porta. Os pouco mais de 600 euros que ganhava, em 2014, não chegavam para pagar a pensão de alimentos aos filhos, nem a prestação ao advogado, que contratara para o defender no processo que lhe tinha sido movido pelo agente da PSP da esquadra do Cacém, Luís Filipe dos Prazeres Maria.

Em 2011, um divórcio recente e a vida contada ao cêntimo, impediram Mário Brites de pagar o condomínio do prédio onde vivia. O administrador do condomínio e vizinho de Mário Brites, o agente da PSP Luís Maria, mandou executar a dívida. “Foi aí que tudo começou”, recorda. “O tribunal apreendeu-me os documentos e penhorou-me o carro. Nunca mais recuperei o carro. E o Luís Maria arranjou maneira de me prender; montou-me um cilada”, conclui, plenamente convencido de não ter sido forte o suficiente para fazer valer a versão dele. “Ele tinha os colegas da esquadra do Cacém. Foram eles que me levaram preso. Se não fosse a investigação da judiciária, tinha lá ficado dentro muitos anos”. O desabafo é fundo e não disfarça o alívio.

Mário Brites foi detido em 2011. Esteve preso cinco meses. “Fui acusado inocentemente da tentativa de homicídio ao agente Luís Maria”. O sol bate-lhe em cheio nos olhos verdes. As lágrimas que lhe correm pela cara são provocadas pelo impacto da luz, mas também pelo peso dessa memória. “Foram cinco meses, que para mim foram anos. Aquilo foi muito duro. Só pensava - o que é que tinha feito para estar ali ?” Mário engasga-se, atropela as palavras, quer dizer muita coisa de rajada.

A resposta à dúvida de Mário Brites foi dada pelo tribunal de Sintra, em agosto de 2011. O coletivo de juízes absolveu-o da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, de que vinha acusado e que lhe custara os tais cinco meses de cadeia.

A leitura do processo não deixa grande dúvidas. As provas da alegada tentativa de homicídio, que tinham convencido o juiz de instrução, revelaram-se, em julgamento, demasiado frágeis e Mário Brites foi libertado. “Quando ouvi dizer que estava livre, vim cá para fora e ajoelhei-me”, diz, levantando os braços para o ar, como se estivesse a reviver o momento.

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Luís Filipe dos Prazeres Maria é um dos 591 operacionais das forças de segurança que integram a base de dados construída por quatro investigadores digitais. Durante mais de um ano - e ajudados por polícias preocupados com o conteúdo das mensagens trocadas nos grupos fechados de Facebook por operacionais das forças de segurança – os quatro investigadores digitais identificaram 296 polícias e 295 militares da GNR.

Estão no ativo e agem online, a maioria assume o próprio nome. Pedem "uma limpeza seletiva". Dizem que há "tanta gente para abater". Insultam o Presidente da República, o primeiro-ministro e vários líderes partidários. Oferecem tiros, prometem mutilar pessoas, descrevem com detalhes sórdidos a violação sexual de uma jornalista. Chamam "raça indesejável" aos ciganos. Assumem-se como racistas.

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Nas mensagens que partilha, Luís Maria valoriza a figura de Salazar, destila ódio contra os ciganos e enaltece o sargento Fahur, um antigo operacional da polícia militar brasileira e atual deputado federal. Entre outros pensamentos, Fahur afirma que “bandido bom é bandido morto”. Numa outra mensagem partilhada por Luís Maria, o autor quer recrutar um sniper “com experiência em ministros e presidentes”.

Mostrámos a Mário Brites a coleção de mensagens partilhadas por Luís Maria, que integram a base de dados. Deixámos para o fim o anúncio do recrutamento do sniper. “Ele partilha isso? Então o assassino, não sou eu. Um agente da PSP a partilhar isso? Ele devia era ter vergonha na cara”. À medida que a conversa se encaminha para o fim, Mário Brites vai dando fortes sinais de que a vingança se serve fria. A última frase de Brites é uma resposta à nossa pergunta: “Que mensagem quer deixar a Luís Maria, que irá certamente ler esta reportagem?” “Se for homem e tiver um pingo de vergonha na cara, que me peça desculpa”. Os olhos de Mário Brites brilham e não é por causa do sol. Na última frase, as lágrimas já estão secas e o sorriso preenche-lhe a cara.

Pedimos ao líder da Organização Sindical da Polícia, a OSP-PSP, sindicato de que Luís Maria é dirigente, que falasse com Luís Maria, solicitando-lhe que respondesse ao nosso apelo para um conversa. Pedro Carmo falou, mas nunca terá convencido Maria a contar-nos a sua versão dos factos.

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A 25 de março de 2019, o Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, elabora um despacho onde decide aplicar a pena de aposentação compulsiva ao agente Luís Filipe dos Prazeres Maria. “Foi tudo anulado”, garante-nos Pedro Carmo. O presidente da OSP-PSP esclarece que o advogado do sindicato conseguiu reverter a situação. “O Luís foi reintegrado e indemnizado”, regozija-se o amigo.

Vários agentes da PSP e militares da GNR que integram a base de dados usam o ex-ministro Eduardo Cabrita como autêntico saco de boxe. “Inútil de ministro. Teremos de tomar medidas mais radicais”, grita um dos polícias, identificados pelos investigadores digitais.

Francisca Van Dunem é outra das vítimas da difamação cometida por alguns destes policias. A antiga ministra da Justiça considera que o problema não deve ser desvalorizado. “Nós não estamos aqui a falar de liberdade de expressão. Há pessoas que, quando pertencem a certas instituições, têm de ter um discurso institucional. E se o discurso institucional dessas pessoas é esse, então é o discurso errado. Não estão no sítio certo…”

A mesma ideia é-nos transmitida por Anabela Cabral Ferreira, inspetora-geral da Administração Interna. “Definitivamente não queremos nas forças de segurança quem tenha ideias contrárias ao Estado de Direito.”

Esta juíza desembargadora, que tem poder disciplinar sobre as forças de segurança, explica que “as forças de segurança são autoridade do Estado, são expressão da soberania do Estado, por isso quem defenda ideias racistas, xenófobas, homofóbicas, não é bem vindo nas forças de segurança”.

Vários juristas que o Consórcio de Jornalistas de Investigação consultou consideram que os crimes praticados online por estes operacionais no ativo são claros: discriminação e incitamento ao ódio e à violência, ameaça com prática de crime, incitamento à desobediência coletiva, coação contra órgãos institucionais, instigação e apologia pública de um crime, incitamento à alteração violenta do Estado de Direito, ofensa à honra do Presidente da República, incitamento à desobediência coletiva, denegação de justiça e difamação, discriminação racial e religiosa.

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A militar da GNR, que discorre sobre Bruno Candé, o ator negro assassinado a 25 de julho de 2020, pode ter incorrido num crime de discriminação racial. A militar, uma das 11 mulheres da base de dados, partilha uma notícia retirada do sítio online da CMTV, onde se afirma ter sido” lançada petição para atribuição de subsídio vitalício à família do ator Bruno Candé”. “Subsídios vitalícios?”, interroga-se a militar, “são para ser dados a pessoas que realmente precisam, não a parasitas da sociedade”. Mostrámos a mensagem a Olga Araújo, irmã do ator assassinado. Num tom sereno e pausado, Olga reage: “Nós não somos parasitas. Eu sou cozinheira, a minha mãe trabalhou a lavar loiça muitos anos, que até tinha feridas nas mãos. Temos orgulho de sermos negros, mas também temos orgulho de sermos portugueses. Quero responder diretamente [a essa militar da GNR]: Pense duas vezes antes de falar. Porque na família do Bruno Candé ninguém é parasita. E somos maioritariamente mulheres, trabalhamos nas limpezas, nas casas, nos lares de terceira idade. Que não digam isso”. Os olhos de Olga encheram-se de lágrimas, o queixo treme. Aos 53 anos, o rosto adquiriu, de repente, os contornos infantis da criança injustiçada.

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Manuel Carlos Clero, o comandante-geral da GNR, força a que pertence a militar que injuriou a família de Bruno Candé, recusou dar-nos uma entrevista. Magina da Silva, diretor nacional da PSP, também optou pelo silêncio. O ministro que tutela as duas forças de segurança, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, fez o mesmo.

Quem é escolhido para trabalhar na PSP ou na GNR aceita duas regras. A “subordinação ao interesse público” e a “defesa da legalidade democrática, da segurança interna e dos direitos fundamentais dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei”.

Esse foi o primeiro compromisso a ser quebrado por estes agentes da PSP e militares da GNR.

Alguns agentes da PSP, revoltados com a impunidade de que gozam os colegas que usam as redes sociais para organizar grupos racistas e violentos, forneceram os caminhos para a investigação. A entrada de novos membros em grupos fechados do Facebook só é autorizada a quem demonstrar que pertence à PSP ou à GNR, e foram esses agentes críticos que facultaram aos investigadores digitais as credenciais necessárias. O consórcio de jornalistas de investigação teve acesso a uma base de dados obtida dentro das próprias redes sociais. Através do trabalho dos investigadores digitais foi possível confirmar a identidade dos perfis. Sabemos quem são estes operacionais, sabemos a que esquadra ou quartel pertencem, sabemos que posto ocupam.

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*com Cláudia Marques Santos e Ricardo Cabral Fernandes

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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