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Há um impasse na Europa e por isso os relógios voltam a andar para trás no próximo fim de semana

Há um impasse na Europa e por isso os relógios voltam a andar para trás no próximo fim de semana
Olena Ruban/Getty Images

Brexit, pandemia e guerra travaram um processo que parecia certo em 2019. Sem decisão à vista, a hora volta a mudar este domingo

Na madrugada de domingo, os relógios europeus vão recuar uma hora e dar entrada no horário de inverno.

Esta convenção, que é seguida em Portugal há cerca de um século, tem sido questionada nos últimos anos. Na UE, está inclusivamente em curso uma proposta para que deixe de ser seguida. Sem decisão à vista, adiada pelas contingências dos últimos anos, permanece a tradição.

Um impasse sem fim à vista

Na Europa, a discussão remonta a 2018. Na altura, a Comissão Europeia publicou um estudo de opinião segundo o qual 84% dos europeus são a favor de acabar com as mudanças de horário duas vezes por ano.

Em 2019, o Parlamento Europeu votou favoravelmente para que esta medida avançasse. Tudo indicava que o fim estava iminente, dependendo apenas da negociação do Conselho Europeu. A previsão era a de que os relógios seriam mexidos pela última vez em 2021, mas isso não aconteceu.

O Conselho Europeu considerou que a medida carecia de uma avaliação de impacto e remeteu o tema para a Comissão Europeia. Começa aqui o impasse que se prolonga até hoje. No site oficial do Parlamento Europeu, a medida está “à espera da posição do Conselho em primeira leitura” e tudo indica que as negociações ainda não começaram.

Pelo caminho surgiram outros temas mais prementes que têm concentrado os esforços europeus, desde o Brexit, à pandemia e mais recentemente à guerra. Entretanto, e com eleições europeias pelo meio, a proposta poderá já não reunir o consenso necessário, não sendo claro quando o tema voltará à agenda do Conselho.

Uma solução para todos será muito difícil de encontrar

Fora o processo legislativo, os contornos práticos desta medida iriam necessitar de uma cuidadosa negociação.

Implementar uma medida única seria difícil, uma vez que tal implicaria mais horas de sol para uns e menos para outros. Por outro lado, permitir a cada país escolher o seu próprio horário (sem um alinhamento de acordo com a geografia ou atuais zonas temporais) teria o potencial de gerar um enorme caos. De uma Europa com três fusos horários, poderíamos potencialmente passar a ter uma panóplia de horários nacionais.

Mesmo a coordenação dos horários com os países vizinhos pode ser problemática. Por exemplo, com a saída do Reino Unido da UE, uma medida destas pode implicar ter horários diferentes na República da Irlanda e na Irlanda do Norte.

Depois, há ainda países, como são os casos de Portugal e Grécia, que pretendem manter a mudança de horário duas vezes por ano por considerarem que adotar permanentemente ou o horário de verão ou o de inverno não traria benefícios.

Mas de onde veio então a mudança de horário?

As primeiras experiências locais em que a mudança de hora foi convencionada remontam ao século XVIII, mas a primeira alteração horária oficial aconteceu já no século XX. Em 1916, devido ao esforço de guerra, o Império Alemão mudou a hora de forma a ajustar o horário de trabalho às horas de sol e assim poupar carvão. A medida foi seguida por outros países europeus, incluindo Portugal.

Ao longo do século, a opção por este horário foi variando ao longo do tempo e entre países.

Atualmente, todos os países europeus (exceto a Islândia) seguem o decreto da UE de 2000 que sincronizou as mudanças no horário europeu, de forma a garantir a coerência dentro do mercado único. Assim, ficou definido que as mudanças acontecem no último domingo de outubro (menos uma hora) e no último domingo de março (mais uma hora).

A Europa está, contudo, do lado da minoria que ainda mantém as mudanças entre horário de verão e inverno. Segundo a Statista, em 2020 apenas 40% faziam a alteração. Mas nem sempre foi assim, uma vez que mais de 140 países já chegaram a ter horários sazonais em algum momento da sua história.

Além da Europa, mantêm o horário de inverno os EUA (com a exceção dos estados do Arizona e Havai). Isto poderá mudar em breve. Num consenso pouco habitual, o Congresso norte-americano aprovou a 15 de março a Lei de Proteção Solar, que visa abolir a mudança de horário. O plano é o de os relógios dos EUA mudarem pela última vez no próximo ano, mas a medida tem ainda de passar na Câmara dos Representantes e ser promulgada pelo Presidente.

Porquê mudar agora?

O argumento original a favor do horário era a poupança de energia. Contudo, os estudos sobre o tema são inconclusivos ou dão conta de poupanças residuais. A energia que é poupada ao final do dia parece ser compensada pela gasta ao início da manhã, quando temos por exemplo de acender as luzes para nos prepararmos para sair de casa.

Atualmente, a defesa do horário de inverno prende-se, sobretudo, com a ideia de ter mais luz durante a manhã, sobretudo para as crianças nas escolas e agricultores nos campos.

Contudo, os argumentos pelo fim das mudanças de horário têm-se multiplicado. Ao longo dos anos surgiram vários estudos a associar o horário de verão a vários efeitos nefastos.

“Temos dois tipos de efeitos: os efeitos agudos ou temporários, aqueles que sentimos se forma quase que imediata aquando da mudança da hora para o horário de Verão, e os efeitos crónicos ou permanentes, aqueles que advém de viver com o horário de Verão após a sua mudança”, explica João Lipinsky Nunes, bioquímico doutorado em biofísica e coordenador da iniciativa Better Times (que visa promover horários sociais saudáveis).

“Os problemas temporários da mudança para o horário de verão são já conhecidos pela maioria das pessoas. Incluem o encurtamento do sono, a incidência de ataques cardíacos aumenta, assim como de acidentes vasculares cerebrais. Leva também ao um pico de suicídio, muitas vezes cognominado de sazonal. Este mal-estar físico e psicológico traduz-se às restantes esferas sociais como o aumento de acidentes rodoviários e no trabalho, o aumento de erros laborais, com um decréscimo agudo de produtividade. Sem surpresas aumenta a mortalidade súbita. São efeitos observados até um mês após a transição."

Porém, acrescenta o especialista, “mais graves ainda são os efeitos crónicos de quem vive no horário de Verão. Este horário leva cronicamente à privação de sono e, com este, aumenta o risco de cancro e mortalidade associada, aumentam os problemas cardiovasculares, a depressão, os distúrbios de personalidade, a ansiedade, a agressão, o ser associal, o mal-estar generalizado, e claro a redução da esperança média de vida. Para se lidar com estes efeitos negativos na saúde física e mental, observam-se mudanças de estilo de vida: fuma-se mais, bebe-se mais álcool, consome-se mais café, e desenvolvem-se mais hábitos alimentares não saudáveis.”

“E claro, se enquanto indivíduos não estamos bem, a nossa sociedade não pode funcionar melhor. Observa-se um declínio no desempenho escolar e no trabalho, assim como perdas de produtividade que se refletem na diminuição dos ordenados. Parece haver um corpo de publicações de alguma complexidade que sugere que o horário de verão causa poluição extra com impacto negativo significativo, devido não só ao aumento do consumo de combustíveis, como às horas a que se polui.”

Qual é então o horário mais saudável para Portugal?

Nos últimos anos, a argumentação baseada na biologia humana tem também ganho peso. Novas provas científicas surgiram que indicam que cerca de metade dos nossos genes são regulados por uma espécie de relógio biológico (ritmo circadiano, funções que o corpo repete em ciclos de cerca de 24h e que também são influenciadas por estímulos externos). Estes estudos dão fundamentação a quem defende a adoção de horários sociais mais próximos dos naturais e por isso mais saudáveis.

“O fuso horário mais saudável para Portugal continental seria UTC-1 (a Hora dos Açores), pois reflete melhor a sua posição geográfica (ideal seria UTC-0.5)”, ou seja menos meia hora do que o Tempo Universal Coordenado. “Isto porque, embora não estejamos cientes disso, o nosso horário padrão presente (UTC+0) é já em si um quase horário de Verão. Todos os países da Europa Ocidental vivem com uma hora legal desajustada e Portugal não é exceção", defende João Lipinsky Nunes.

“No entanto, nenhuma destas opções está na mesa política. Entre o horário padrão (UTC+0) e o horário de verão (UTC+1), UTC+0 seria a melhor escolha. Não é bom, mas é de longe melhor que UTC+1. Temos infelizmente de aceitar que, politicamente, há mais de 100 anos que Portugal não observa um fuso horário adequado à sua geografia.”

[artigo atualizado dia 25 de outubro para incluir declarações de João Lipinsky Nunes]

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: calmeida@expresso.impresa.pt

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