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“A gente tem de se precaver”, mas “quando é para arder, arde tudo igual”: reportagem onde homens e mulheres esperam pelo fogo que há-de vir

A aldeia de Canedo, em Ribeira de Pena, Vila Real, fica isolada no meio de uma serra. Os bombeiros mais próximos situam-se a 25km
A aldeia de Canedo, em Ribeira de Pena, Vila Real, fica isolada no meio de uma serra. Os bombeiros mais próximos situam-se a 25km
Rui Farinha / NFactos

Em Canedo, Ribeira de Pena, e em Cavez, Cabeceiras de Basto, as memórias do fogo estão bem vivas. No verão as temperaturas ultrapassam os 40 graus e o risco de incêndio é máximo nestas duas aldeias do interior norte de Portugal. As pessoas estão habituadas ao calor, mas quando se trata se fogos não há precaução que baste: “Medo temos, preparados ninguém está” porque “haja prevenção ou não haja, quando tiver que arder, arde tudo igual”

“A gente tem de se precaver”, mas “quando é para arder, arde tudo igual”: reportagem onde homens e mulheres esperam pelo fogo que há-de vir

Mara Tribuna

Jornalista

“O incêndio foi ali, até àquele alto acolá em cima. Tivemos medo que chegasse até cá abaixo, às casas”. Maria Gomes fala enquanto aponta para a Serra de Santa Comba, onde deflagrou um incêndio este domingo, ao início da tarde, em Canedo, no concelho vila-realense de Ribeira de Pena. O fogo que ficou controlado na segunda-feira não foi o maior de que tem memória: “Há uns anos, em 2010, ficámos cercados. Não ficou nada verde, pouco ou nada”.

Canedo é uma pequena freguesia que fica “isolada no meio de uma serra”. “Medo temos e preparados ninguém está”, suspira. Os bombeiros mais próximos são os de Ribeira de Pena e ficam a cerca de 25 quilómetros. “Bombeiros, GNR, postos médicos, INEM.... É bonito, mas ficamos isolados no meio de tudo”.

Maria Gomes tem uma casa perto de uma zona florestal que ardeu há 12 anos. Desta vez comprou uma mangueira de 50 metros “caso fosse preciso”
Rui Farinha / NFactos

Por precaução, Maria Gomes comprou uma mangueira de 50 metros e andava com ela no carro esta segunda-feira, caso o fogo reacendesse. Tem uma casa perto da floresta que ardeu há 12 anos “e podia ser preciso”, mas não chegou a usá-la. O incêndio mobilizou 107 operacionais, 24 meios terrestres e quatro helicópteros. Segundo a Proteção Civil, foi dado como concluído por volta das 21 horas e, no total, estima-se que tenham ardido 285 hectares na Serra da Santa Comba.

As temperaturas em Ribeira de Pena, Vila Real, são bem altas no verão, chegando a ultrapassar os 40 graus. “Agora está nos 37º, 38º”, estima Alfredo Marta que se abriga do sol junto a uma paragem de autocarro, onde estacionou a sua moto-quatro azul-elétrica e onde conversa com mais três senhores.

Alfredo Marta tem um pinhal mesmo ao lado da sua casa e o terreno não está limpo, porque quem tratava disso faleceu
Rui Farinha / NFactos

A população local já está habituada a este calor sufocante. “A proteção é pôr-se à sombra ou ficar em casa. E aqueles que não aguentam põem-se debaixo do chuveiro”, brinca. Há ainda a opção do rio Douro: “A gente pode banhar-se ali em baixo, na praia fluvial”. Mas “com o tempo assim é perigoso” para os incêndios, reconhece.

Esta semana, sobretudo a partir desta terça-feira, as temperaturas voltam a aumentar e Ribeira de Pena fica novamente com risco de incêndio máximo pelo menos até sábado, como alerta o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Desde o grande incêndio em agosto de 2010 que se tem tido mais cuidado, nota o senhor Alfredo, ainda assim há sempre risco. “Quem está mais em perigo até sou eu, tenho mesmo um pinhal ao lado da minha casa”. O terreno não está limpo porque quem tratava disso faleceu, e Alfredo tem ali “um problema”. “Se não limparem, vou ter de me queixar”, avisa.

Márcio Marcelino, à esquerda, é o presidente da Junta de Freguesia de Canedo desde 26 de setembro de 2021. Conversa com um popular, o senhor Aníbal, à sombra de uma paragem de autocarro
Rui Farinha / NFactos

O presidente da Junta de Freguesia de Canedo está, por acaso, mesmo ao lado de Alfredo Marta a conversar com o senhor Aníbal, à sombra da paragem de autocarro, e ouve a queixa. Márcio Marcelino, mais novo e misturado entre os populares, responde que é um assunto que tem de tratar com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). O senhor Alfredo acata.

No centro de Canedo, só “meia dúzia” de habitações está em maior risco por causa do fogo, daí o local de refúgio mais próximo ser na aldeia de Seirós, a cerca de oito quilómetros e onde já foi feito um simulacro. Os abrigos são sítios seguros onde a população se pode resguardar em caso de incêndio — são uma das medidas previstas no programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras”, lançado após a tragédia de Pedrógão Grande, há cinco anos.

Mas “haja prevenção ou não haja, quando tiver que arder, arde tudo igual”, diz Márcio Marcelino, presidente da Junta desde as eleições autárquicas de 26 de setembro do ano passado, lembrando o que aconteceu em 2010, na aldeia próxima de Alijó: “As casas não estavam em perigo, mas arderam na mesma. Quando é para arder, arde tudo igual”, insiste.

No incêndio que deflagrou no domingo na Serra de Santa Comba e ficou controlado na segunda-feira, a Proteção Civil estima que tenham ardido 285 hectares
Rui Farinha / NFactos

“O fogo claro que preocupa”

Saindo de Canedo pela estrada nacional 312, em 40 minutos chega-se a Cavez, uma freguesia em Cabeceiras de Basto, no distrito de Braga. Cabeceiras de Basto e Ribeira de Pena são dois municípios contíguos, por isso, a população de Cavez foi acompanhando o incêndio pelas notícias. Assim fez Maria Cândida Boticas Teixeira, que se apresenta com o seu nome completo. “Vi aqui tudo na televisão”, conta à sombra de um muro de pedra.

“Isto está mau. Sabem o que devíamos fazer a quem acende o fogo?”, pergunta e responde logo: “Agarrar neles e metê-los dentro do fogo. Se metêssemos o primeiro, os outros já não iam acender”. Em Cavez, já houve alguns incêndios em épocas anteriores — continua a senhora Maria — mas este ano ainda não. O facto de a aldeia estar mais concentrada no centro, e não tanto nas zonas florestais, ajuda porque “é mais difícil o fogo chegar aqui”. Ainda assim, em agosto de 2020 um incêndio de grandes dimensões chegou a colocar algumas casas da freguesia em risco.

Maria Cândida Boticas Teixeira diz que o facto de a aldeia de Cavez estar mais concentrada no centro, ajuda porque “é mais difícil o fogo chegar aqui”
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A casa de Maria Cândida Boticas Teixeira é já ao lado, aponta. Por ser “fresquinha”, é lá que fica nas horas de maior calor, sobretudo quando os termómetros marcam mais de 40 graus. “É muito quente. Eu não aguento, não. Depois de almoço, deito-me a dormir até às 15h e depois venho aqui para a sombra. À noite ponho a ventoinha que é para me dar mais fresco”, conta.

Mais em cima, três senhores conversam num café. Por ordem: Júlio Carvalho Barroso, Aníbal Pimenta e Domingos Leite Pimenta. O senhor Júlio vem sempre para aqui à tarde, independentemente do calor que está. É assim que lida, à sombra. Aníbal também se costuma “entreter no café a conversar com os amigos”, tal como o seu sobrinho, o senhor Domingos, que de manhã às 5h30/ 6h já está de pé para trabalhar. Apesar de tudo, todos estão habituados às altas temperaturas que elevam o risco de incêndio para o nível máximo em Cabeceiras de Basto.

Da esquerda para a direita, Júlio Carvalho Barroso, Aníbal Pimenta e Domingos Leite Pimenta conversam depois de almoço à sombra do café. É assim que lidam com o calor
Rui Farinha / NFactos

“O fogo claro que preocupa. É crucial para toda a gente, para o clima, para o ar que nós respiramos…”, começa Aníbal Pimenta. No ano passado, por exemplo, ardeu uma parte da Serra do Moledo que ladeia a freguesia, a outra parte ainda é capaz de arder porque tem “muitas mimosas e elas ardem muito, parece impossível”.

A origem dos incêndios é sempre difícil de apurar: “A gente não pode estar a dizer ‘foi posto ou foi natural’”. Domingos Leite Pimenta intervém para dizer que algumas dezenas de anos atrás havia muitos incendiários. “Era tudo interesse por causa dos pinhais. Mas isso agora acabou”. Júlio Carvalho Barroso interrompe para explicar melhor: “Quando havia muito pinhal, havia incêndios todos os anos aqui na Serra do Moledo porque dava dinheiro aos madeireiros, que depois compravam os pinheiros por metade do preço” — por estar queimada, a madeira era vendida mais barata.

Júlio Carvalho Barroso explica que, antigamente, havia muitos fogos na Serra do Moledo porque depois os madeireiros compravam os pinheiros queimados por metade do preço
Rui Farinha / NFactos

“Agora, a gente tem de se precaver”, retoma o senhor Aníbal. Tem a cautela de ter sempre os terrenos limpinhos, sobretudo os que ficam perto de casas. “Se todos tivessem mais um bocadinho de cuidado, mesmo não sendo obrigados, e cortassem mais, era bom. Mas nem toda a gente faz isso”.

Paulo Guerra, presidente da Junta de Freguesia de Cavez há nove anos, reconhece que não é muito fácil manter todos os terrenos completamente limpos, mas assegura que nas zonas de maior risco há cuidado. Até porque “as pessoas têm medo, mais medo do que nunca, depois de Pedrógão”.

Após o maior e mais trágico incêndio florestal de que há memória em Portugal, “tudo mudou um bocadinho”, diz. Começou a haver um trabalho diferente: foram dadas ações de sensibilização à população, “a autarquia adquiriu um kit de incêndio, como têm aquelas carrinhas de bombeiros mais pequenas”, e a freguesia passou a contar com “dois pontos de água — tanques na floresta onde os bombeiros e helicópteros podem ir buscar água”.

Paulo Guerra é presidente da Junta de Freguesia de Cavez há nove anos e diz que desde a tragédia de Pedrógão “tudo mudou um bocadinho”
Rui Farinha / NFactos

Outra das medidas que consta no programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras” prevê a existência de um plano de evacuação, para retirar as pessoas com segurança em caso de incêndio. Em Cavez, “o que tenho conhecimento é que as autoridades tentam lá ir buscá-las e trazê-las para locais seguros, como aqui”, o Centro Comunitário de Cavez.

Apesar de as pessoas e as habitações estarem mais protegidas do que há uns anos, o risco de incêndio continua real. Paulo Guerra faz questão de deixar claro que “se o tempo ficar muito seco, claro que há sempre perigo”. E como diz Maria Cândida Boticas Teixeira, sempre com o seu nome completo, quando o fogo chegar só há uma coisa a fazer: “A gente tem de fugir”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mtribuna@expresso.impresa.pt

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