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Se os europeus com menos de 20 anos deixassem de fumar, mortalidade por cancro cairia para metade em 50 anos

Se os europeus com menos de 20 anos deixassem de fumar, mortalidade por cancro cairia para metade em 50 anos
ATHIT PERAWONGMETHA

Combate ao álcool, ao tabaco e à má alimentação evitaria 40% dos tumores, garante o francês Thierry Philip, presidente da Organização de Institutos Europeus de Cancro

O discurso é direto e claro, como se espera quando o tema é o cancro. Aos 72 anos, o oncologista francês Thierry Philip, presidente da Organização de Institutos Europeus de Cancro assume sem sombra de dúvida que “se os europeus com menos de 20 anos deixassem de fumar amanhã, a mortalidade por cancro cairia para metade em 50 anos”.

Em entrevista ao jornal espanhol El Pais, o especialista reconhece que o quadro geral da luta contra o cancro progrediu desde os anos 50, mas deixa uma chamada de atenção para o facto do cancro do pulmão entre os homens estar a descer, em quase toda a Europa, enquanto “sobe paradoxalmente entre as mulheres porque entre elas continua a aumentar o consumo do tabaco”.

Quanto aos números da eficácia do tratamento, deixa o quadro atual a nu: Apesar de se poder detetar precocemente o cancro com uma TAC, fazer uma cirurgia e provavelmente curar 50% dos pacientes, a verdade é que “a maioria dos tumores pulmonares chegam ao hospital já com metastases e, ao fim de 5 anos, a taxa de sobrevivência é de 5%. Com imunoterapia sobe para os 23%, mas cerca de 80% dos doentes acaba por morrer”, diz.

Os efeitos da pandemia

“Com muito trabalho” para combinar radioterapia e imunoterapia, talvez se consiga chegar a uma taxa de recuperação de 30%, admite. No entanto, “o melhor é mesmo deixar de fumar”, precisa.

“Em 2020 e 2021 não houve rastreios, nem diagnósticos precoces, nem acessibilidade ao hospital. Temos a certeza de que por isso mesmo a mortalidade vai aumentar pela primeira vez em 10 anos”

Sobre o efeito da pandemia na luta contra o cancro, o oncologista é igualmente preciso: “Em 2020 e 2021 não houve rastreios, nem diagnósticos precoces, nem acessibilidade ao hospital. Temos a certeza de que por isso mesmo a mortalidade vai aumentar pela primeira vez em 10 anos”.

Mas a completar este quadro aponta um dedo a um problema que Portugal também conhece bem e tem a ver com a falta de recursos humanos no Serviço Nacional de Saúde. “Em Paris, 20% das camas dos hospitais estão bloqueadas porque faltam enfermeiros, sobretudo à noite. Precisamos de encontrar uma forma de atrair enfermeiros e, sobretudo, de convence-los a ficar”, avisa.

“O único impacto positivo da pandemia é que pela primeira vez todos os países decidiram comprar vacinas juntos, o que significa que também será possível abordar a atenção ao cancro em conjunto”, destaca.

Custos insustentáveis

Mas os tratamentos contra o cancro são cada vez mais caros. O sistema de saúde não pode deixar de ser sustentável? questiona a jornalista Jessica Mouz, do El Pais. “Essa é uma questão importante. Em França, por exemplo, em 2008, o custo total dos fármacos oncológicos, especialmente a quimioterapia porque a imunoterapia ainda não tinha chegado, foi de mil milhões de euros. Agora, mil milhões de euros é o aumento anual dos gastos. Isto é algo insustentável. E o que podemos fazer? Primeiro, precisamos de transparência para compreender os preços dos medicamentos porque as farmacêuticas vendem os fármacos com preços diferentes em França, Itália, Espanha, Polónia ou Roménia, por exemplo. Temos de compreender o que se passa com o preço, perceber porque é mais baixo em alguns países, ir às farmacêuticas e dizer-lhes que não podemos pagar o valor que nos estão a cobrar”, responde.

“Não se pode dizer que os medicamentos são muito caros porque resultam de um longo período de investigação se esse processo foi feito num laboratório público”

Sobre a questão dos preços, Thierry Philip recorda, ainda que “muitos dos medicamentos em causa são demasiado caros considerando o que custa faze-los chegar ao mercado, uma vez que em boa parte, tudo começa com uma investigação num laboratório académico, pago por dinheiro público”. “Não se pode dizer que os medicamentos são muito caros porque resultam de um longo período de investigação se esse processo foi feito num laboratório público”, alerta.

Transparência contra a desigualdade

E o modelo de compra conjunta de vacinas que se agilizou durante a pandemia poderia ser replicado no cancro, na imunoterapia, por exemplo? “Sim. O que se passou abriu uma porta que vemos como parte da solução”, comenta, consciente de que é preciso não esquecer, também, que para lá da transparência pesam as relações entre países ricos e menos ricos, o que conduz ao tema do combate à desigualdade também na luta contra o cancro.

“O problema na Europa não é passar de uma taxa de sobrevivência ao cancro infantil de 80% para 85% em França, o que também é importante, mas sim garantir que qualquer criança europeia tem 80% de possibilidades de se curar do cancro, o que ainda não é uma realidade”, afirma.

“Lutar contra a desigualdade significa ser desigual na distribuição de dinheiro no que se refere a cada país”

Um modelo que considera viável na luta contra a desigualdade é criar uma bolsa para comprar fármacos para todos a nível europeu e, depois, distribui-los entre todos, incluindo, se for necessário, alguma forma de ajuda dos países mais ricos. “Queremos mais dinheiro da Europa para os que têm menos. Se queremos lutar contra a desigualdade, não precisamos de dar mais dinheiro á França, Alemanha, Itália ou Espanha, necessitamos, sim, de dar mais dinheiro à Polónia, à Roménia e a outros países de leste. Lutar contra a desigualdade significa ser desigual na distribuição de dinheiro no que se refere a cada país”, atira.

Prevenção como ponto crítico

E se o futuro passa cada vez mais pela inteligência artificial e “machine learning” como ferramentas no combate ao cancro, Thierry Philip reitera que abordagem ao problema do tratamento oncológico não tem a mesma qualidade em todo o lado por problemas económicos ou de organização tal como pela falta de fármacos. Assim, “o foco deve estar nesses países onde a qualidade ainda não é suficiente” e uma das medidas que propõe é haver um centro oncológico integral para cada 5 milhões de habitantes, com uma rede de centros à sua volta para que os pacientes recebem o mesmo tratamento independentemente da porta a que forem bater.

Um dos pontos críticos da desigualdade de tratamento é a prevenção, diz. “40% dos tumores poderiam ser evitados através do combate ao consumo de álcool, tabaco e má alimentação”. Outro ponto crítico é o acesso aos rastreios, em especial no caso dos cancros de mama e colo do útero. O acesso ao diagnóstico precoce é outro fator crítico de desigualdade. “É necessário ter um diagnóstico o mais cedo possível porque se for um tomar pequeno pode ser tratado e a probabilidade de cura é maior.

Mas até o tratamento em si é um fator de desigualdade: “Quem analisar o mapa da Europa e as unidades de radioterapia , percebe que em alguns países não são suficientes e nem todos podem oferecer aos seus doentes um acesso rápido aos cuidados necessários (radioterapia, quimioterapia e imunoterapia).

Numa nota para o futuro, o especialista diz acreditar ser provável conseguir detetar quem está em risco de ter cancro com uma simples análise de sangue e, a partir daí iniciar o tratamento. Esta forma simples de trabalhar e detetar a doença promete ser uma forma eficaz de lutar contra a desigualdade de tratamento.

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