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“Esta exposição pública das vozes destas raparigas vítimas de assédio volta a remetê-las ao silêncio e coloca-lhes um pendor de culpa”

“Esta exposição pública das vozes destas raparigas vítimas de assédio volta a remetê-las ao silêncio e coloca-lhes um pendor de culpa”
Tim Robberts

A psicóloga clínica Isabel Filipe comenta como ‘grave”, "perigoso" e uma “dupla agressão” a partilha massiva por WhatsApp dos registos áudio "desencriptados" de testemunhos sob anonimato dados pelas alegadas vítimas de assédio na Faculdade de Direito, da Universidade de Lisboa, à TVI e RTP. E afirma nesta entrevista que, além dos inevitáveis sentimentos de culpa, a exposição das vozes destas jovens mulheres ao julgamento público e às suas esferas sociais, pode levar as vítimas “a uma situação de isolamento.” E afirma ainda que a Faculdade em causa deveria proteger o anonimato destas vítimas e de lhes dar apoio psicológico

Que duplo impacto pode ter esta exposição das vozes e da identidade destas alunas vítimas de assédio?
É preciso ter em conta que estas pessoas podem levar anos a revelar ou mesmo a confrontar-se com o que aconteceu. Porque não deixa de ser uma exposição da sua vulnerabilidade. E quando optaram por falar era porque estariam garantidas condições de anonimato e de proteção. Ao se retirar isso está a ser feita uma dupla agressão. Até porque as vítimas têm muitas vezes medo e vergonha do que aconteceu. Apesar de terem sido vítimas de um abuso acabam por construir dentro das suas cabeças uma forma de encaixar a situação como se elas próprias tivessem conduzido para isso...

Quer dizer que boa parte das vítimas de assédio não revelam de imediato, ou nunca, estas agressões por medo ou vergonha?
Sem sombra de dúvida. Acontece muito isso porque por vezes essas mulheres nem conseguem identificar que foram vítimas. Elas sabem que houve uma situação de agressão e assédio, e pela bizarria da situação, e como no momento o mecanismo foi ficarem sem ação, paralisadas, mais tarde culpam-se por isso. É uma resposta muito comum que ao longo do tempo acaba por cristalizar. Julgam que contribuíram para isso porque teriam de ter tido outra resposta que no momento não tiveram recursos psicológicos para tal.

O sentimento comum destas vítimas é a culpa? E é a culpa que cria este silêncio e que protege os agressores, neste caso alegadamente alguns dos docentes da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa?
Sim. Podemos dizer isso. Muitas vezes durante a própria situação de assédio existe aqui uma manipulação do discurso por parte do agressor para fazer a vítima sentir-se mal, para normalizar o abuso, e como sabemos que estamos perante situações hierárquicas, onde há abuso do poder, condicionado-as em questões académicas por exemplo, ou através de ameaças com consequências para as suas vidas. Por isso é que estas vítimas demoram anos a revelar. E só acabam por revelar o que lhes aconteceu mediante movimentos de empoderamento de outras vítimas também, porque se sentem protegidas. E é bastante perigoso estarmos a levantar este anonimato, porque a opinião pública é muito rápida no julgamento e não se preocupa em saber detalhes.

Neste caso as vozes e os testemunhos destas vítimas estão a ser massivamente partilhados de forma anónima em grupos de Whatsapp. Mais uma vez, estarão as vítimas a ser mais penalizadas publicamente pela sociedade, do que os agressores?
Está a haver uma devassa da vida privada de vítimas por parte de pessoas que não sabem do que estão a falar, porque os contornos destas situações são extremamente complexos e sensíveis. E temos aqui ainda uma questão que acaba por decorrer da partilha destes dados, que é voltar a alimentar o medo que as vítimas sentiram durante esse tempo. E acabam por perder novamente o controlo da sua narrativa. Ou seja, uma pessoa que é vítima de uma situação destas, de abuso e de assédio, evidentemente que não está no controlo da sua vida. E é algo com consequências e condicionantes na sua vida académica, profissional, social, pessoal. Por isso é que é escondido.

Que outros impactos nas vítimas pode ter esta exposição massiva nas redes sociais dos testemunhos de abuso?
Além das evidentes consequências psicológicas, mais em termos pessoais. Como o sentimento de culpa e mexer com a sua auto-estima, provocar ansiedade e estados depressivos que decorrem desta situação, nós vamos ter pessoas expostas ao público e às suas esferas sociais também. E nós sabendo que sendo nós muito rápidos a julgar o outro sem termos os dados todos, é muito fácil que a pessoa se veja numa situação de isolamento.

O julgamento público da sociedade perante estes casos é ainda muito misógino, machista, penalizante para as vítimas mulheres?
Totalmente. Posso dizer que tenho casos de pessoas em consulta que aos descreverem estas situações o fazem com muita dor associada, nunca antes falaram sobre isto, anos volvidos, e falam como se elas próprias tivessem sido responsáveis de alguma maneira pelo que aconteceu, não identificando sequer que foi um caso de assédio, de abuso, de crime. E sobre a misoginia temos um exemplo muito claro desta situação que é o caso do Cristiano Ronaldo. Independentemente se ele foi culpado ou não. Ou seja, quando estamos a falar de figuras masculinas que inspiram a simpatia da opinião pública, e que estejam a ser alvo de queixas deste género, é quase impossível para as pessoas acreditarem na queixa. Porque há aqui um privilégio endógeno associado ao género masculino transversal na sociedade. É muito mais fácil penalizarmos uma mulher pela opinião que está a dar, ou pelas situações que comete, quando num homem é tudo normalizado e até, muitas vezes, encorajado. Como podemos ver neste caso, há algo que está a acontecer ao se exporem estes casos. Haverá certamente alguma intenção negativa ao se exporem estas mulheres, o que nos leva a pensar na questão de género, e o que está aqui na base. A lógica seria que todos ficassem horrorizados com o que está a acontecer e tentassem apurar as responsabilidades.

As redes sociais poderão estar a fazer ‘bullying’ a estas jovens mulheres?
Independentemente do termo, porque o ‘bullying’ muitas vezes pressupõe uma hierarquia, de facto está a haver uma violentação do espaço delas e da palavra delas que não teve poder durante tanto tempo. E quando estas raparigas finalmente escolhem falar num espaço seguro sobre o que passaram para sarar as suas feridas emocionais, veem-se numa arena onde estão novamente a ser criticadas e julgadas. É fácil perceber que esta exposição vai voltar a remeter estas raparigas ao silêncio e coloca-lhes um pendor de culpa que elas próprias já carregam, mesmo sem qualquer razão para o fazer.

Deveria haver uma proteção de "whistleblower" para denunciantes de assédio? Como sugeriu no Twitter, Miguel Lemos, assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL)?
Isso pode fazer sentido porque do que tem sido falado, além das próprias pessoas que estão a passar por esta situação, há outras pessoas que têm conhecimento do que aconteceu e, muitas vezes, não falam por receio ou por acharem que as suas próprias vidas podem ser condicionadas por isso. E ao garantirmos aqui alguma proteção, muito além do que está a acontecer agora, facilitaria o apuramento da verdade.

Que acompanhamento psicológico e que sugestões e conselhos daria para estas jovens mulheres?
Acima de tudo, temos de assegurar a estas mulheres e raparigas que passam por estas situações que elas estão do lado de quem sofreu um abuso. Ou seja, elas não são culpadas e não têm qualquer responsabilidade, independentemente do que aconteceu. Estamos a falar de posições hierarquicamente superiores, de alguém que exerceu um poder sobre elas na procura de algo, e é muito importante assegurar este lado de proteção. E instigar um apoio psicológico que deveria ser disponibilizado até pela própria faculdade onde isto tudo aconteceu.

A Faculdade de Direito em causa deveria estar do lado destas vítimas e fornecer apoio psicológico para estas raparigas, é isso?
Claro que sim. Garantir apoio psicológico e confidencialidade, que ajude estas raparigas a encaixar o que lhes aconteceu. Porque estas situações não acontecem num momento e desaparecem. Estas situações arrastam-se, prolongam-se, acompanham e condicionam toda a vida destas mulheres em todas as suas esferas. Claro que o apoio psicológico é a primeira ferramenta para poderem começar a recompor-se do que lhes aconteceu, porque são traumas que muitas vezes ficam cristalizados naquele momento e condicionam a imagem que a pessoa tem de si mesma.

E a forma como estas mulheres se relacionam sexualmente e emocionalmente daí em diante, suponho…
Totalmente. Ao nível sexual é uma esfera muito particular, que envolve muita vulnerabilidade, muita exposição e confiança no outro. E, muitas vezes, as pessoas com esferas sexuais diretamente condicionadas, acabam por ter uma sexualidade muito empobrecida ou desajustada por causa do que aconteceu. Porque é inevitável que as vítimas de alguma forma revivam a situação que lhes aconteceu anos antes. isto perdura no tempo e percebe bastante apoio. Quem questiona “mas porquê falarem agora”? é de quem tem uma opinião claramente desinformada, que não passa por estas situações ou não as acompanhou de perto. Ter a opinião pública a comentar um tema deste calibre e com esta complexidade acaba por ser bastante devastador para as pessoas que passaram por isto. Muitas vezes este julgamento sem qualquer conteúdo vai validar o medo e a culpa que estas pessoas já tinham sentido antes. E desculpabiliza os agressores. Sabemos que é sempre fácil de contornar isto, porque é sempre “uma brincadeira”, “não foi bem assim” ou porque “ela também quis”. Há sempre uma série de atenuantes que desculpabilizam o comportamento do outro lado, do agressor. Há sempre esta noção de que mesmo que um professor atue de determinada forma, coloque uma mão ou chame alguém aparte a uma sala para falar a sós porque “é mais prático” a pessoa está numa posição submissa e há uma completa relação de poder. Por isso é que deveria haver um cuidado do corpo docente de esclarecer toda esta situação. É do interesse de toda a gente compreender o que aconteceu e garantir que não volta a acontecer e compreender e penalizar o que aconteceu para trás.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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