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Comunidades judaicas de Lisboa e do Porto usaram critérios opostos para certificar processos de nacionalidade a sefarditas

Comunidades judaicas de Lisboa e do Porto usaram critérios opostos para certificar processos de nacionalidade a sefarditas
Peter Macdiarmid/Getty Images

Cada uma das duas comunidades interpreta interpretou à sua maneira a lei, que demorou mais de um ano a ser regulamentada. Agora, a detenção do Chefe-Rabino do Porto terá acelerado a promulgação. Comunidade de Lisboa fala da necessidade de “acrescentar transparência” e Associação Frente Cívica insta o Governo a esclarecer se passaporte de Abramovich” foi obtido regularmente”

Com mais de um ano de atraso, o decreto-lei que regulamenta a Lei da Nacionalidade acabou de ser promulgado pelo Presidente da República e, apesar de ainda não ter sido publicado, já se sabe que traz mudanças no que toca à atribuição de nacionalidade portuguesa a descendentes de sefarditas, nomeadamente tornando-a mais limitada.

“O novo regulamento da Lei da Nacionalidade deveria ter sido aprovado em meados de fevereiro de 2021”, comenta ao Expresso o vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL), José Ruah, sublinhando que “desde junho de 2020 — data em que a CIL foi, pela primeira vez, ouvida publicamente sobre esta matéria na Assembleia da República — que alertamos para a importância de se melhorarem processos e procedimentos que permitissem a melhor, mais adequada e mais eficiente regulamentação da Lei, e que acrescentassem transparência e confiança a todo este processo.”

Em causa estão as suspeitas de irregularidades na emissão de certificados de nacionalidade para que judeus sefarditas possam obter a cidadania portuguesa, que levaram, há dias, à detenção de Daniel Litvak, o rabino da Comunidade Israelita do Porto (CIP), e de um dos seus membros, Francisco Almeida Garrett. Estes foram indiciados por crimes de corrupção, associação criminosa, falsificação de documentos e branqueamento de capitais.

Uma das consequências do atraso do Governo foi a manutenção de uma interpretação oposta da lei por parte das duas comunidades designadas para certificar a ascendência sefardita dos requerentes, a de Lisboa e a do Porto. Os critérios aplicados por cada uma para emitir a certificação – condição para que o Instituto dos Registos e do Notariado, e por fim o Ministério da Justiça, atribuam a nacionalidade por esta via – divergem totalmente há sete anos, desde que o primeiro decreto-lei sobre o assunto foi aprovado na Assembleia da República. É devido a esta discrepância em questões de fundo que o mesmo candidato podia ser considerado elegível numa das comunidades e rejeitado liminarmente na outra.

Como definir quem é sefardita?

No Porto, a responsabilidade da certificação recai apenas no “Chefe Rabino da comunidade, Daniel Litvak”, como esclarece Michael Rothwell, porta-voz da CIP, a este jornal. Por outro lado, no Porto entende-se que quem requer a nacionalidade

portuguesa ao abrigo desta lei tem de ser judeu: “De outro modo, estaria posta em causa a ‘tradição de pertença a uma comunidade judaica’ exigida pela lei, e o Estado não teria precisado das comunidades judaicas - bastariam historiadores e genealogistas. Uma uma genealogia de 15 ou 20 gerações é forçosamente um desenho que não se pode comprovar e que jamais foi aceite pelo Grão-Rabinato de Israel nos casos de migração para este país. Não se pode chamar sefardita a um não-judeu.”

A comunidade de Lisboa defende outra abordagem, recorrendo a historiadores para analisar os pedidos, sem a participação do rabino. “Um historiador analisa o processo e verifica a documentação. Se o processo estiver em ordem, é distribuído para análise qualitativa por outro historiador. Ou seja, a pessoa que recebe o processo verifica a conformidade, e depois o mesmo é analisado por outro profissional habilitado (historiador). Se as provas documentais e materiais comprovarem a ascendência, o processo é despachado favoravelmente” pela direção, explica José Ruah. Para a CIL, um descendente tem de provar, através de documentos, “que existe um encadeamento familiar direto desde um indivíduo comprovadamente sefardita até ao requerente”. Existe também uma noção distinta quanto à fé atual deste: “De acordo com a letra e o espírito da lei, é necessário ser-se descendente de judeu sefardita para obter o certificado. No entender da CIL, a emissão de certificado não pode beneficiar, ou prejudicar, em função da religião seguida pelo requerente. É a descendência que interessa, não a religião que o requerente professa.”

A divergência de critérios na leitura da lei decorre da lacuna legal que até agora existia. “A lei tem várias interpretações. Lisboa e o Porto trabalham de forma diferente e nunca trocamos qualquer tipo de conversa”, sublinha Esther Mucznik, ex-dirigente da CIL, ao Expresso. “Em Lisboa entende-se que deve ser certificado quem comprove, documentalmente, a ascendência judaica sefardita. Para isso, recorre-se a historiadores e genealogistas. No Porto, só certificam judeus sefarditas e quem o faz é o rabino. Os rabinos são líderes espirituais, mas não têm competência histórica suficiente para comprovarem uma origem sefardita”, diz, notando ser esta “uma lei de reparação histórica” que, como tal, “se refere ao passado e não ao presente” do requerente.

Quem decide a nacionalidade?

“Temos alertado para esta questão da atribuição de nacionalidade ao abrigo da lei dos sefarditas, particularmente no Porto, onde os processos estão eivados de irregularidades”, acusa Paulo de Morais. Segundo o presidente da Associação Frente Cívica, o Governo tem de tomar uma posição “clara e rápida” em relação à concessão da nacionalidade portuguesa a uma figura “obscura e duvidosamente sefardita” como Roman Abramovich: “Ou explica que a nacionalidade foi obtida regularmente ou, se não tiver sido, declara a nulidade do ato e esta lhe é retirada.” Paulo de Morais questiona a razão por que ainda não foram inquiridos os restantes nomes ligados ao processo. “Ao fim de dois meses, só inquiriram duas pessoas”, afiança.

Contactada a vice-presidente da CIP, Isabel Ferreira Lopes, esta negou-se a fazer declarações ao Expresso sobre as suspeitas de ilegalidades na certificação de judeus sefarditas para a obtenção da nacionalidade portuguesa de que a comunidade está a ser alvo. A neta do capitão Barros Basto, há cem anos fundador da CIP, disse apenas não ser ela “a pessoa indicada” para responder às nossas questões.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LLeiderfarb@expresso.impresa.pt

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