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“O papel da pornografia não é educar”: tema tabu deve ser desconstruído para evitar riscos entre jovens, alertam especialistas

Foto: Getty Images
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A exposição precoce à pornografia pode gerar perceções erradas sobre comportamentos sexuais entre os jovens: é muitas vezes “a primeira fonte de (des)educação sexual”. Para as especialistas ouvidas pelo Expresso, é urgente falar sobre o tema e apostar na educação sexual, sobretudo nas escolas

“O papel da pornografia não é educar”: tema tabu deve ser desconstruído para evitar riscos entre jovens, alertam especialistas

Mara Tribuna

Jornalista

“Eu acho que a pornografia é uma vergonha. Para dizer a verdade, eu via muitos filmes pornográficos, comecei a vê-los por volta dos 11 anos. Acho que realmente destruiu o meu cérebro e sinto-me devastada por ter sido exposta a tanta pornografia.” A confissão de Billie Eilish espelha a realidade de muitos jovens que começam a ver vídeos pornográficos quando são ainda novos e, por vezes, interiorizam comportamentos desfasados da realidade que reproduzem nas suas relações. “Nas primeiras vezes que fiz sexo, não me negava a fazer coisas que não eram boas porque pensava que era aquilo por que me devia sentir atraída”, admitiu a cantora de 20 anos no programa Howard Stern da rádio Sirius XM, em dezembro.

Muitas vezes, o primeiro contacto que os jovens têm com o sexo é através da pornografia, que se torna simultaneamente “a primeira fonte de (des)educação sexual a que têm acesso”, diz ao Expresso a psicóloga sexóloga Tânia Graça. “Em muitos casos, tendo em conta a facilidade de acesso à internet e a telemóveis, o contacto com este tipo de conteúdos acontece em idades em que, pela fase precoce de desenvolvimento em que se encontram, não lhes é ainda possível processar aquela informação, podendo inclusive ser traumático, como contado recentemente pela cantora Billie Eilish”, explica.

O risco da exposição a conteúdos inapropriados — aliado à curiosidade em explorar a sexualidade — aumenta quando não há qualquer supervisão por parte de adultos, nota Sofia Neves, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. “O facto de esta exposição acontecer, sobretudo em idades mais precoces, sem uma compreensão do que se está a consumir, faz com que muitas práticas veiculadas pela indústria pornográfica sejam normalizadas e, por conseguinte, naturalizadas”, acrescenta a professora do Instituto Universitário da Maia.

Os últimos dados de 2019 do EU Kids Online — um inquérito que avalia a forma como os adolescentes europeus utilizam a internet — mostravam que 37% das crianças e jovens portugueses entre os nove e os 17 anos tinham visto imagens de cariz sexual no último ano, quer fosse através da internet, telemóvel, televisão, revistas ou filmes.

Outra conclusão do inquérito é que quanto mais velhos são os adolescentes, mais contacto têm com conteúdos pornográficos: 41% dos inquiridos entre os 13 e os 14 anos afirmaram ter visto estas imagens no último ano. A percentagem sobe nos jovens entre os 15 e os 17 anos: mais de metade (59%) dizem ter acedido a este tipo de conteúdos. Além da idade, a experiência “é também mais frequente entre rapazes (44%) do que entre raparigas (29%)”, aponta o relatório sobre Portugal.

“As imagens sexuais foram vistas sobretudo em dispositivos com acesso à internet (91%) e na televisão ou filmes (83%). Ver de vez em quando ou cerca de uma vez por mês na internet é apontado por quase metade (49%) dos inquiridos, enquanto 42% referem ver todas as semanas, todos os dias ou quase”, lê-se no documento.

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Banalização da pornografia traz riscos

Há uma tendência para normalizar aquilo que se vê com regularidade, e o excesso de conteúdos pornográficos pode levar a uma certa indiferença perante o banal, levando a uma procura por algo mais extremo: “Existem estudos que mostram que tende a acontecer um escalar no tipo de conteúdos procurados, em busca de mais e mais estímulos”, confirma Tânia Graça.

Outro dos riscos é a trivialização da agressão no sexo, principalmente contra a mulher, uma vez que a grande maioria dos conteúdos em sites mainstream exibem este tipo de comportamentos, continua a psicóloga sexóloga. Pode, também, ser uma consequência provável do consumo de pornografia por jovens “já que o seu entendimento do que estão a observar tende a ser desprovido de enquadramento”, aponta a professora universitária Sofia Neves. Uma vez que estes conteúdos criados com fins comerciais tendem a ser entendidos como normais, “a probabilidade de haver uma reprodução da presumível norma é elevada”.

Há uma forma de olhar para o género feminino como sendo muito mais permeável à pornografia, constata Inês Amaral, investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. Como se trata de uma indústria de entretenimento feita maioritariamente a pensar nos homens, reflete “uma estrutura machista que também inclui mulheres”. Como diz também a professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, há uma normalização de estereótipos e papéis de género tradicionais. “Diria que, em última instância, a pornografia é uma forma de violência”.

Menos tabus

A pornografia é uma indústria que não vai desaparecer e, eventualmente, os jovens terão acesso a este tipo de conteúdos em algum momento da sua adolescência. Por isso, é preciso abordar o tema, em vez de evitá-lo, sugerem as três especialistas ouvidas pelo Expresso.

O assunto ainda é tratado como um tabu e tem de deixar de ser, começa Sofia Neves. É importante enquadrar junto dos jovens que se trata de “uma indústria cujo objetivo é obter lucro”, promovendo essa consciência de que são atores e atrizes a representar e “a demonstrar uma série de expetativas irrealistas”.

A professora e investigadora Inês Amaral concorda. Enquanto não se falar sobre sexo e pornografia de forma aberta e sem receio, em casa e na escola, torna-se muito complicado explicar que, da mesma forma que os jovens veem um outro filme qualquer, há coisas que não são reais e não podem acontecer, ou só podem acontecer se a outra pessoa consentir, sublinha.

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Mais educação sexual

Em segundo lugar, “é muito importante lembrar que o papel da pornografia não é educar. Esse é o papel dos pais, cuidadores, professores, meios de comunicação e da sociedade em geral”, diz Tânia Graça. Por esse motivo, é urgente a educação sexual sobretudo nas escolas — deve ser a palavra de ordem. Neste ponto, deve ainda apostar-se na “formação dos professores que a vão realizar para que se consigam adequar às necessidades dos alunos”, urge a psicóloga sexóloga.

É preciso ir mais além nas escolas e promover o pensamento crítico. Inês Amaral diz que não chega falar sobre os riscos das relações sexuais, das doenças sexualmente transmissíveis, do planeamento familiar ou da contraceção — é necessário fazer mais. “Pessoas mal informadas tomam decisões más. A partir do momento em que se informa, os jovens fazem com essa informação aquilo que entenderem”.

Não são só as escolas ou os professores, as famílias também têm uma responsabilidade acrescida em falar sobre o assunto. “Ignorar que ele existe é favorecer o ruído que o consumo acrítico da pornografia acarreta”, diz Sofia Neves, acrescentando que a atitude pedagógica tem de sobrepor-se à moralista, para haver um diálogo aberto e uma reflexão informada.

Por último, Tânia Graça defende que deve haver abertura e um espaço seguro também nas famílias, “em que conversas e dúvidas possam ser feitas sem medos”. E lembra que, neste propósito, a escritora e realizadora de pornografia ética e feminista Erika Lust criou recentemente, juntamente com o marido e duas sexólogas, o “The Porn Conversation”. É um projeto gratuito que fornece ferramentas para famílias e educadores saberem como conversar sobre sexo com os jovens, nomeadamente sobre o tema da pornografia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mtribuna@expresso.impresa.pt

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