Piedade Guerreiro, agricultora, de 51 anos, vive neste monte há mais de 30. Tem conseguido acesso a água para uso doméstico e para dar de beber aos animais e regar a cevada e o centeio, que na primavera transforma em silagem, a partir de um canal de rega do Mira. Porém, corre o risco de não ter a renovação da licença para manter a funcionar a mangueira preta de duas polegadas que se estende pelos 1,8 km que vão do canal até sua casa.
Ela e cerca de uma centena de outros proprietários que recebem água a “título precário” dos canais de rega ligados à Barragem de Santa Clara. A carta da Associação de Beneficiários do Mira (ABM) a dizer que só terá acesso à água do canal em 2022 se se comprometer a arranjar uma solução alternativa até 2023 chegou-lhe há uma semana.
“Mas como? Isto é porem-me uma corda ao pescoço!”, desabafa Piedade, com os olhos marejados. “Não tenho alternativa. Sem água, vou acabar com tudo e vou-me embora”, desespera. O poço e a represa que tem noutro terreno não chegam para abastecer a casa onde vive com o marido, o filho e a sogra nem para dar de beber a 40 vacas.
A 200 metros dali, é o turismo rural no Monte de Corte Enchária, gerido por Ivone Felizardo e o marido, que está em risco de fechar. Recuperaram a casa, o celeiro e a adega, que herdaram dos avós dele, e transformaram-nos em alojamento turístico, fizeram uma piscina e um jardim e abriram portas em 2016. Mas a carta da ABM também lhes chegou. “O poço está quase seco e só dá para regar o jardim, e não temos furos”, diz Ivone, exasperada, a pensar que foram incentivados a desenvolver turismo no interior do concelho e tudo podem perder.
Só na freguesia de Saboia são duas dezenas de pessoas dispersas pelos montes às quais é preciso levar cinco mil litros de água por mês, “para as casas e para os animais”, captada na barragem ou no ponto de água dos bombeiros da aldeia, esclarece o presidente da junta, Fernando Guerreiro. O mesmo acontece nos montes das freguesias vizinhas de Santa Clara-a-Velha e Luzianes, onde poços e nascentes secaram e os furos têm de ir cada vez mais fundo. Sobre a carta da ABM apenas diz: “Não acho correto, mas para a semana temos uma reunião com eles e com a câmara.”
O presidente da Câmara de Odemira, Hélder Guerreiro, soube da dita carta pelas redes sociais, mas garante que “uma solução irá ser encontrada” na reunião da próxima semana, onde também estará representada a Administração da Região Hidrográfica do Alentejo (ARH/APA). “Vamos fazer o levantamento de quem são os precários e que tipo de água precisam”, garante.
Num concelho que se estende por 1700 quilómetros quadrados, a distribuição pública de água canalizada não chega a 30% da população. “Não é possível levar água canalizada a todos”, admite. Os custos seriam enormes. Também “não está garantida a água para a campanha de rega de 2022 e, como tal, não faz sentido continuar a pensar em deixar crescer a área agrícola. Temos de investir no concelho de forma sustentável e reduzir as perdas de água, que andam entre 30% e 40%”, acrescenta.
Questionada pelo Expresso sobre a ameaça de cortar água aos “precários” e se considera que a área de produção agrícola no Perímetro de Rega do Mira pode continuar a crescer, a ABM (organização privada, tutelada pelo Ministério da Agricultura, que gere as Barragens de Santa Clara e de Corte Brique) não responde. Já a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, assume que “é garantido um volume mínimo para os pequenos agricultores (1000 m3/ano) situados fora do aproveitamento hidroagrícola, nomeadamente para a rega das hortas familiares e para o abeberamento de gado”.
Fugindo à questão sobre se tenciona limitar a expansão do regadio na região, a ministra diz apenas que “para sustentar decisões futuras” foi feito o estudo “Regadio 20|30 – Levantamento do Potencial de Desenvolvimento do Regadio de Iniciativa Pública no Horizonte de Uma Década” e que foram aprovados €500 mil do PDR2020 para a ABM “definir uma estratégia para aumentar a eficiência na distribuição de água”.
Esta também é a preocupação da AHSA — Associação Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos concelhos de Odemira e Aljezur, que refere “não lhe caber promover ou impedir o crescimento da produção agrícola”, mas sim “apoiar os associados e fomentar boas práticas agronómicas, sociais e ambientais, que contribuam para a sustentabilidade da atividade da região”.
“Estamos perante um modelo injusto de distribuição de água, controlado por multinacionais para benefício de poucos e que deixa de fora quem vive da agricultura de subsistência”, critica o engenheiro naval Diogo Coutinho, natural de Lisboa, que se mudou com a família (a mulher e três filhos) para junto da barragem. Não tem falta de água em casa, mas vê em risco o projeto comunitário da Associação Clara, que dirige, de reabilitar uma antiga fábrica de tijolo para a transformar num espaço de residências artísticas, co-living e partilha de conhecimento para valorizar os recursos da região. Mas à qual não chega água.
Para Sara Serrão, do movimento Juntos pelo Sudoeste, “o modelo de agricultura intensiva existente no Sudoeste Alentejano não é de desenvolvimento, mas de subdesenvolvimento. Não respeita as especificidades e sensibilidades da região, privilegia longas cadeias de distribuição (exportação), sem devolver ao território qualquer desenvolvimento ou evolução e pondo em causa o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina”. As estradas continuam esburacadas, a rede de telemóvel não funciona e as escolas desaparecem, tal como a população.
As bacias dos rios Mira e Sado são vistas como “as mais preocupantes” no estudo “Disponibilidade de água em cenário de alterações climáticas”, divulgado no início de dezembro pelo Ministério do Ambiente e Alterações Climáticas. Segundo o investigador Rodrigo Proença de Oliveira, “em todas as bacias há redução acentuada de precipitação. Deixámos de ter anos húmidos que enchem as nossas albufeiras, o que nos deixa menos preparados para enfrentar situações de seca”.