O que acha que pesou mais, o facto de a região produzir vinho há dois mil anos ou ser a região demarcada e regulamentada mais antiga do mundo?
Vou contar-lhe uma coisa. Eu entretanto fui presidente da Organização Internacional da Vinha e do Vinho, com sede em Paris, e comecei a frequentar a sede da Unesco. Ia levando uma garrafa de vinho. Mas tínhamos grande receio que a candidatura fosse centrada no vinho, uma vez que muitos países árabes são membros do Comité de Património Mundial. Não sabíamos como seria a reação, se a candidatura fosse excessivamente centrada no vinho. Fizémos uma integração progressiva e tivémos também a sorte de o ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios), que integra a UNESCO, ter enviado um perito,um francês, país de cultura do vinho. Foi um alívio, mas na dúvida optou-se por centrar a candidatura na excelência da paisagem.
Mas há mais regiões de paisagem em socalcos...
Já havia bens classificados de paisagens vinícolas, mas podíamos marcar a diferença. O primeira foi Cinque Terre, na Ligúria, em Itália, uma paisagem excecional em socalcos, mas temos algo imbatível que é a escala. O Douro tem mais de 40 mil hectares de vinha e uma viticultura de montanha desde a cota do rio até 600 metros de altitude. Ou seja, era de facto uma candidatura diferenciadora. Entretanto outras regiões vitícolas foram classificadas, como o Wachau, na Áustria, Saint Émillion, Champagne e Bourgogne, em França, que colocaram as vinhas no centro das candidaturas, mas no caso de Champagne no quarteirão vitícola da cidade de Eperney, também na excelência da construção à volta das grandes casas de champagne e Bourgogne à volta dos climas. O Douro impôs-se como um bem de paisagem vitícola, sem grandes monumentos, que não temos, na mancha classificada. No Douro, puxou-se pelas construções vernaculares, as casas das pessoas, as adegas.
A certificação foi uma mais-valia para a região, mas também trouxe constrangimentos...
Sempre bem aceites. Mesmo as casas e as marcas do sector do Vinho do Porto interiorizaram os constrangimentos como orientações para a armação do terreno. O que se propôs foram sistemas tecnicamente testados e vantajosos do ponto de vista da produtividade do trabalho, nomeadamente os taludes grandes. O redimensionamento dos patamares pode ter inconvenientes, como a menor densidade de plantação, mas tem vantagens na tarefarização do trabalho. Havia um racional económico. Caíu bem na região.
Os vinhos locais ganharam mais notoriedade?
Ganharam. Natália Fauvrelle, diretora do Museu do Douro, sustenta que a classificação foi uma forma de fazer justiça à região, já que o seu vinho levou para o mundo inteiro o nome da cidade do Porto e as pessoas não conheciam sequer a região.
Muitos turistas que visitam a cidade e as Caves de Vinho do Porto em Gaia pensam que o vinho é produzido ali ao lado.
Há essa confusão, a classificação permitiu fazer apelo ao papel da região e aos seus vinhos.
A qualidade dos vinhos tranquilos do Douro também terá ajudado a desfazer a confusão...
Sim, mas é preciso ver que a denominação dos vinhos tranquilos é recente, dos anos 80. Uma empresa francesa veio aqui fazer umas compras e os tradutores diziam vin de table, que para os franceses é um vinho sem denominação de origem, é a maior desclassificação possível de um vinho. O Instituto da Vinha e do Vinho e a Comissão Europeia retirou a designação vinho de mesa de vez. Digo sempre aos tradutores para usar a denominação de origem Douro. DOC (Denominação de Origem Controlada) Douro. Mas 20 anos ainda não foram suficientes para as pessoas sentirem que que há um retorno económico efetivo.
O que falta?
A quebra demográfica enorme, confirmada pelo último Censos, é um revés.
O Douro perdeu 30 mil habitantes.
É impressionante não conseguir fixar população. Quer dizer que não há empregos que permitam uma vida digna na região.
António Cunha, presidente da CCDR-N, dizia recentemente que o Douro está melhor mas precisa de estancar a perda de população. A solução é emprego qualificado?
As comemorações destes 20 anos obrigam-nos a pensar. Tenho participado em debates, como o de ‘Os amigos de Ventozelo’, para discutir estas questões. Uma é a atratividade da região, que se faz com a oferta de emprego e melhores salários. A maior parte do trabalho do Douro é pago com o salário mínimo, trabalho manual duro e bastante sazonal. O que cria problemas. Ouço falar permanentemente da falta de mão de obra na vindima...
Feita com recurso a imigrantes.
O problema sempre existiu, em Bordéus há o recurso a estudantes estrangeiros. Nós não temos essa prática, mas se calhar vamos ter nos nos aproximar dela. Mas para mim o relevante é que de facto o retorno económico que se podia pensar que o Douro Património Mundial traria ainda não existe.
O rendimento per capita subiu de 73% para 85%, pouco para travar a desertificação. António Cunha já referiu que é uma ameaça para a classificação. ..
É uma ameaça porque o maior sustentáculo desta paisagem é a atividade económica. Dados de 2021 apontam que o Vinho do Porto está a cair drasticamente. Felizmente nos últimos 10 anos estancou-se a perda de valor, mas o volume desceu, apesar de ter havido uma compensação a seguir aos confinamentos da pandemia.
Os restaurantes e bares estiveram fechados, não houve festas...
Daí a reposição de stocks agora. O que vale é o acréscimo de venda do DOC Douro.
A queda do Vinho do Porto deve-se a quê? Perdeu-se o hábito de celebrar com Vinho do Porto?
Claramente. Eu trabalhei durante muitos anos com o presidente da Galp, Ferreira de Oliveira, e quando fez os negócios com os chineses convenci-o a festejar sempre com Vinho do Porto. Os portugueses têm de o voltar a fazer. Vimos ainda recentemente na vida política festejar-se com champagne...
Duas garrafas, anunciou Rui Rio na vitória das diretas do PSD.
É uma pena, sendo um homem do Porto. A EDP sempre que há cerimónias públicas é champagne, champagne, ao menos que fosse com espumantes dos nossos. Chegou a haver um movimento no Douro a questionar por que não se ficava com as categorias especiais, com designação 10, 20 anos, colheitas especiais, vintages, LBV. Era impossível, se se deixasse de vender em volume os agricultores ainda sofriam mais. O importante é fixar duas coisas: o retorno económico não é sentido ou não havia essa sangria da população na região, daí sugerir ao presidente da Liga dos Amigos do Alto Douro Vinhateiro que se olhe para outros patrimónios mundiais onde o equilíbrio e a sustentabilidade da atividade económica foi conseguida através de uma mais justa repartição da riqueza. O caso de Champagne é um deles. Justa repartição é melhor remuneração do trabalho dos produtores e do trabalho manual. Algumas empresas até fazem alguma diferenciação de salários, mas não é suficiente ou não havia fuga da população.
A crescente aposta no enoturismo do Douro é uma alternativa?
A vertente turística é uma alternativa, que não é de agora. Quando presidi ao IVP criei a Rota do Vinho do Porto antes do tempo, em 1993/ 94, que entretanto morreu. Congregava os produtores que tinham condições para acolher turistas. Era uma marca coletiva com certificação, mas entregue aos operadores.
Nos últimos anos o número de turistas duplicou na região, representando mais de meio milhão de dormidas em 2019.
Têm aparecido ofertas boas, não só de alojamentos, como de centros de interpretação, quintas com acolhimento de pequena escala e grande nível. O importante num enoturismo é viver o ambiente onde se produz o vinho, com visitas às vinhas, colheita e pisa da uva, iniciativas que têm um sucesso enorme. Faço uma leitura muito positiva do Douro Património Mundial, embora ainda lhe falte escala para permitir mais retorno e trabalho, sem ferir a paisagem.
O ICOMOS continua a fazer a monitorização da paisagem?
Sim. Houve apenas um incidente por causa da construção da Barragem do Tua, na fronteira. Foi um erro, devia-se ter avisado e ter discutido com a Unesco o impacto que tinha na paisagem. O susto de uma eventual desclassificação passou, ultrapassado airosamente.
Cabe aos proprietários comunicar a renovação das vinhas?
A vinha é uma cultura muito regulada. E como o programa Vitis (Apoio à Reestruturação e Reconversão da Vinha) financiou quase toda a reestruturação no Douro, a Direção Regional de Agricultura tem de dar sempre aprovação, permitindo a triangulação com o produtor e o centro de monitorização.
No início do ano, a CCDR-N, a Direção Regional de Cultura do Norte e a QUERCUS deram parecer negativo ao Douro Marina Hotel, projeto de Mário Ferreira em Mesão Frio, por representar uma ameaça à classificação do Alto Douro Vinhateiro. O problema foi a escala?
Claramente. É preciso proteger a bacia visual do Douro de intrusões de escala e cromáticas. A CCDR-N está atenta à salvaguarda da região. Se uma empresa consegue trazer para o Douro maior capacidade de armazenamento, desde que o impacto na paisagem seja respeitado, acho que se pode autorizar. Há até casos de caves de armazenamento em que se enterram os empreendimentos. A Quinta de Nossa Senhora do Carmo tem uma cave enorme de armazenamento, mas está totalmente enterrada e a parte da frente parece um muro. Há soluções arquitetónicas que permitem crescimento orgânico sem ferir a paisagem. Em Alijó, a Gran Cruz fez uma adega e o maior centro de armazenamento de Vinho do Porto fora de Gaia, sem ferir a paisagem. É bom, dá emprego na região e não vejo isso como um obstáculo.
Em que fase está a candidatura à Unesco das Caves de Vinho do Porto, em Vila Nova de Gaia?
Não sei. Acho que faz sentido juntá-las, como aconteceu ao património classificado em Foz Côa, que se juntou com Siega Verde, do lado de lá da fronteira. É o prolongamento da arte rupestre paleolítica. No caso das caves, juntar a classificação pode ter um handicap por serem geograficamente longínquas. Mas o Porto fez bem ao juntar a Ponte D. Luiz I e a Serra do Pilar, em Gaia. Também foi uma evolução que segue a orientação da Unesco, que privilegia o alargamento ou consolidação dos patrimónios existente a novos.
Em 2018, o presidente da Comissão Nacional da UNESCO esteve em Foz Côa e advertiu que deve ser evitada a banalização de espaços e sítios classificados para que não se transformem numa espécie de lista telefónica. Concorda?
Totalmente. Há que demonstrar o verdadeiro caráter excecional e universal do bem a classificar, valorizando o que é distintivo.
Que mensagem quer deixar nesta efeméride?
Gostava que o impacto económico fosse mais sentido pelas populações e há uma coisa que valia a pena valorizar mais: a viticultura de montanha. Nos próximos 20 anos, devemos trabalhar mais essa mensagem para o exterior. Temos uma viticultura de encostas íngremes e difíceis e o termo montanha é mais consensual, além de ter outra vantagem: a UE tem programas de apoio à agricultura de montanha, quando a tendência é reduzir os apoios à viticultura e o programa Vitis está no fim.