Sociedade

Arquivo Expresso: José Pinto da Costa na primeira pessoa em "O que a vida me ensinou"

José Pinto da Costa
José Pinto da Costa
Rui Duarte Silva

Texto publicado na Revista Única do Expresso, a 23 de julho 2005, na secção "O que a vida me ensinou": José Pinto da Costa, médico-legista, 71 anos. Passaram-lhe pelas mãos trinta mil cadáveres, mas, se vai a um funeral, evita ver o morto. Visto como uma das referências nacionais na medicina-legal, nunca quis ser outra coisa na vida a não ser médico. Há tempos, ao ver a morte por perto na Hungria, descobriu que preferia morrer no Porto

Arquivo Expresso: José Pinto da Costa na primeira pessoa em "O que a vida me ensinou"

Valdemar Cruz

Jornalista

Para mim, o futuro é hoje. Não vivo de maneira nenhuma agarrado ao passado. Acho que o passado é importante só para nós compreendermos a maneira de estar hoje. Antes de ter nascido já era acarinhado. Se a ciência tivesse sido seguida, eu não tinha nascido. A minha mãe tinha tido uma doença na bacia e o médico dizia que ela devia fazer um aborto, porque não era possível eu nascer. Mas a minha mãe entendeu que não. E dizia que, se morresse, morria, mas queria que o filho nascesse. Não havia ainda cesarianas. Nasci naturalmente. A ciência, em regra, não é dogmática e ai daqueles que entendem que é dogmática. De cinco em cinco anos, 30% dos conhecimentos, a qualquer nível, alteram-se. Se encararmos a realidade circunstancial do dia-a-dia desta maneira, não temos grandes problemas, porque é uma variação que faz parte dos critérios de normalidade. Nasci rechonchudo e, depois disso, aquela mulher que não podia ter filhos, teve mais cinco. O aborto era uma realidade médico-social muito privada. As pessoas faziam os abortos todos sem se levantar qualquer espécie de questão, porque não estava na moda a discussão do problema. Tenho uma maneira própria de ver o aborto. Não sou a favor, nem sou contra. Sou a favor da liberdade das mulheres. A sociedade deveria manter condições para que uma mulher que quisesse ter cinco ou dez filhos, o pudesse fazer com segurança e dentro de critérios de moralidade, não tendo de dormir os dez filhos com o pai na mesma cama. A discussão filosófica em si mesma é marginal, porque tudo passa pelo conceito de início de vida. A vida começa quando nós queremos. Há quem ache que começa quando se liga o espermatozóide com o óvulo. É uma opinião. Se se defende que é 10 ou 40 dias depois, muito bem também, porque é uma questão de convicção pessoal. Há tantos argumentos científicos a favor e contra, que é difícil estabelecer dogmas. Dogmas sim, mas no aspecto mágico-religioso-filosófico.

Em todos estes anos que levo de vida, aprendi o culto da liberdade. Uma das coisas que me levou a essa noção foi o não acreditar, ou acreditar pouco nos outros. Não acreditar é duvidar, porque até duvido muito de mim. Se duvido de mim, tenho de duvidar dos outros. A ética mudou. A palavra dada, hoje, não conta. A palavra escrita pouco conta. As pessoas criaram a noção de não ter vergonha de não ter vergonha.

Privilegio muito a vida. Apesar de todas as deficiências que existem hoje, a minha atitude é tentar melhorar a vida, embora a vida não seja o valor mais importante. Mais importante que a vida é a liberdade. A Constituição não é assim que diz e o Código Penal também não, mas a liberdade é o valor primacial no meu entendimento. A própria lei acaba por, em determinadas circunstâncias, valorizar alguns aspectos em favor desta minha tese, porque admite o homicídio em legítima defesa. Temos a liberdade de o indivíduo se tornar superior em relação à própria vida do outro. A Constituição da República diz que a vida humana é inviolável, e eu acrescento, fora dos casos em que é violável.

A ideia de morte não me atormenta de maneira nenhuma. Para mim, morrer significa que talvez houvesse imensos projectos que eu não conseguiria concretizar a 100%. Hoje posso morrer sossegado, porque muitos dos projectos continuarão com outras pessoas. Não sou individualista. Em termos de direito de propriedade só faço gala do meu urso de pano que me deu a minha avó. Por isso tenho uma série de conflitos, porque estou fora de moda. O individualismo é cada vez mais crescente. Há tempos estive muito mal durante quatro dias numa unidade de cuidados intensivos, julgando que ia morrer. Isto passou-se na Hungria. É curioso que descobri um sentimento patriótico que não sabia que tinha. Na ocasião, o único desejo que tinha era de vir morrer ao Porto. Não percebo ainda hoje qual a diferença entre morrer na terreola onde eu estava, ou morrer no Porto. É de menos importância a ideia de morte em si mesma, mas a circunstância em que ia morrer.

Em toda a minha vida fiz trinta mil autópsias. O problema que se me coloca é o de saber se antes de iniciar a minha actividade profissional tinha a mesma opinião relativamente à problemática da morte. Não tenho a certeza. De um modo geral, as pessoas que lidam com a morte têm um certo sentido de humor, talvez para tirar aquilo que há de positivo. Isso obriga-nos a ter a consciência de não estar morto. Aqui há uns anos morreu de desastre uma aluna minha e eu, não só me recusei a autopsiá-la, como me recusei a entrar no necrotério para a ver. Vou a funerais, porque tenho de ir, socialmente, mas evito ver o morto. Uma coisa é estar a ver um cadáver numa perspectiva científica, compreender porque morreu, em que circunstâncias, se a responsabilidade é dele ou de outrem, que patologias teve. Isso absorve-nos e desvia-nos de qualquer aspecto emotivo. Outra coisa é estar a ver o morto com flores, com as velas acesas. Para mim há uma diferença radical. O cadáver é um tratado. O cadáver fala, o que é preciso é saber falar com ele. Muitas pessoas pensam que a medicina-legal é a medicina dos mortos, mas efectivamente não é. É mais a medicina dos vivos, do que apenas medicina dos mortos.

Do ponto de vista ético, a eutanásia é perfeitamente normal, na teoria. Se privilegio mais a liberdade do que a vida, se o que está em jogo é a liberdade e a vida, se o indivíduo quer terminar com a vida, deve ter essa liberdade teórica. Na prática pode haver muitas manipulações de uma vontade já fragilizada e ser tirada a vida a uma pessoa que não quer acabar com a vida. A eutanásia é crime, mas o suicídio não é. Uma pessoa pode suicidar-se que ninguém da sua família é punido. Mais, até pode ter um enterro religioso cheio de padres e estandartes. Pode, porque a Igreja, habilmente, e com muita inteligência, entende que se alguém se suicidou é porque não estava no seu juízo. E se não estava no seu juízo não pode ser responsável, nem penalizada por algo que fez não estando no seu juízo. Nos anos 60, iam pessoas pedir-nos que não se pusesse no relatório que se tinha tratado de suicídio, por causa do funeral. Dupla ignorância, porque quando o relatório era entregue, já o enterro tinha sido há muito tempo. Por outro lado, a nossa sociedade entende que a ajuda ao suicídio é crime. Não dá liberdade de dispor da vida do outro, mas dá liberdade de o próprio dispor da sua própria vida.

Liberdade acima de tudo

Não sou filiado em partido nenhum, nem quero ser. A minha postura tem sido contrária à influência político-partidária na escolha de critérios e na orientação de linhas de estar. Deveria cumprir-se o que a Constituição diz acerca de uma independência entre o poder legislativo, executivo e judicial. Para mim, o grande problema da medicina-legal é que não pode estar sob influência político-partidária. Um fascista que apanhou um tiro na cabeça, morreu do tiro na cabeça. Um comunista que apanhou um tiro na cabeça, morreu do tiro na cabeça. Por sorte, no Porto, antes do 25 de Abril, nunca tivemos problemas desse género. Mas Portugal não é só o Porto. E se calhar não era só antes do 25 de Abril que havia pressões desse género. Quando eu, em Castelo de Paiva, chamei a atenção para que não se devia estar a alimentar infundadas esperanças naquelas pessoas em sofrimento à procura dos seus entes queridos, porque era cientificamente impossível, como se veio a demonstrar, isso foi incómodo e levou ao meu afastamento. Apenas por eu ter dito a verdade, porque entendia, e entendo hoje, que acima de tudo está a liberdade, inclusive de a pessoa dizer a verdade. Quando um polícia matou um cigano, escandalosamente eu disse que o polícia matou o cigano. Mas se fosse o cigano a matar o polícia, eu também o dizia, e se calhar já não era escandalosamente. O problema está na essência daquilo que leva a tornar humano um ser vivo. Uma pessoa humana é-o desde que nasce até que morre. Aqui há tempos discutia-se em tribunal a valorização a dar a um indivíduo que tinha 83 anos. Eu disse ao juiz que a eutanásia em Portugal é proibida. Logo, eu estou a discutir a circunstância psicobiológica deste cidadão, que deve ser reparada desta e daquela maneira. Não me interessa se tem 83 anos, até porque já entrei em linha de conta com a idade.

Fui sempre contra o controlo da natalidade tal como ela foi feita entre nós nos últimos 30 anos. Moralmente não tenho problemas. Fomos por critérios antiéticos de defender quais eram os interesses da mulher, sem sabermos quais eram, dizendo que um filho era bom, dois o máximo, o resto não. Se não quisemos gente há 30 ou 40 anos, como é que havemos agora de ter gente? Foi um erro gravíssimo. A Segurança Social não tem dinheiro, cada vez a probabilidade de as pessoas atingirem idades mais avançadas e com muita utilidade, é maior. De que é que vão viver essas pessoas? Por outro lado, a própria actividade aumenta a qualidade de vida. Cada vez vamos ter mais velhos.

O importante na vida é no dia seguinte sermos menos ignorantes que na véspera. Ignorantes, somos sempre. Temos é a presunção de que sabemos determinadas coisas. Há pastores muito mais interessantes do que um superdoutorado. As escolhas que fiz, fi-las conscientemente. A pior coisa que pode haver num ser humano é o arrependimento. Significa que escolheu mal, quando tinha a opção de escolher bem.

A vida ensinou-me que o voluntariado é uma noção fundamental para que qualquer estrutura funcione. Ensinou-me que o saber não ocupa lugar. Ensinou-me que o poder corrompe a maior parte dos políticos. A vida ensinou-me que, com trabalho, tudo se deveria conseguir. Deveria.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: VCruz@expresso.impresa.pt

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