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A evolução positiva da “terrível” ‘doença dos pezinhos’

Teresa Coelho é neurologista e a coordenadora da equipa, constituída por cinco elementos, que realizou o trabalho vencedor do Prémio Bial 2020 sobre “A paramiloidose em Portugal e no mundo”
Teresa Coelho é neurologista e a coordenadora da equipa, constituída por cinco elementos, que realizou o trabalho vencedor do Prémio Bial 2020 sobre “A paramiloidose em Portugal e no mundo”
RUI DUARTE SILVA

Investigação. As terapias da paramiloidose, os peixes-zebra na escolha do tratamento do cancro e a letalidade por covid em Portugal foram os trabalhos distinguidos com o Prémio Bial de Medicina Clínica 2020

A evolução positiva da “terrível” ‘doença dos pezinhos’

Ana Baptista

Jornalista

Polineuropatia amiloidótica familiar (PAF) ou paramiloidose familiar. Os nomes clínicos desta doença genética podem não lhe dizer nada, mas ‘doença dos pezinhos’ de certeza que lhe é familiar, principalmente se for da região de Vila do Conde e da Póvoa de Varzim, onde se tem verificado o maior número de casos não só em Portugal, mas no mundo. Aliás, não só a doença foi descoberta cá, no Hospital de Santo António, no Porto, pelo médico neurologista Corino de Andrade, no início dos anos 50, como Portugal deu um contributo determinante no desenvolvimento dos três medicamentos criados já nos anos de 2010.

Foi precisamente a partir daqui que surgiu a ideia de se fazer um estudo alargado sobre a evolução desta doença fatal, para a qual não existe uma cura, apenas tratamentos que atrasam a sua progressão. O resultado foi o trabalho “A Paramiloidose em Portugal e no mundo: de doença fatal a doença crónica com qualidade de vida preservada”, realizado por uma equipa de cinco pessoas e coordenada por Teresa Coelho, neurologista no Hospital de Santo António, que trabalha nesta doença “há quase 30 anos”.

Uma investigação que ontem foi distinguida com o Prémio Bial de Medicina Clínica 2020 e da qual resultaram conclusões relevantes para o conhecimento desta patologia. Por exemplo, evidenciou-se que os tratamentos existentes — primeiro o transplante de fígado, nos anos 90, e depois os medicamentos — mais que duplicaram a sobrevivência, passando de sete a 11 para 24 anos. “Ainda falta fazer muito. Temos diagnósticos tardios, o transplante é eficaz, mas não há fígados para todos, e os medicamentos não são eficazes em todos os doentes, mas existe uma evolução extremamente positiva, porque aumentámos a qualidade de vida dos doentes. E tem sido fantástico testemunhar esta evolução, porque, quando comecei, não havia nada e a paramiloidose é a menina dos meus olhos”, confessa ao Expresso Teresa Coelho.

De facto, o estudo mostra bem a importância do tratamento, porque a paramiloidose, quando “não tratada, é uma doença terrível”, conta a neurologista. Não só afeta os nervos que transmitem a sensibilidade da pele ao cérebro, como afeta também os que regulam os órgãos. Ou seja, pode perder-se a sensibilidade e “uma pessoa pode queimar-se e não sentir nada”, ou pode perder a sensibilidade nos dedos dos pés e deixar de andar. Aliás, é por isso mesmo que se chama doença dos pezinhos, “porque começa nos pés e vai subindo”. Pode ainda levar a que a bexiga funcione mal, originando incontinência, e também afetar o tubo digestivo e os intestinos, provocando desnutrição.

Acresce que é uma doença genética mas que apenas surge já na idade adulta, a partir dos 30 anos, e que, por isso mesmo, “foi perdurando, porque as pessoas se reproduzem antes de ela se manifestar”. E o estudo mostra ainda que se tem tentado impedir que o gene mau passe de pais para filhos recorrendo à reprodução medicamente assistida, através da qual se transferem para a mãe os embriões que não têm o erro genético. Contudo, este é um processo que em Portugal ainda tem as suas limitações. “No Serviço Nacional de Saúde (SNS) faz-se apenas num local, no Hospital de São João, no Porto, e há uma lista de espera enorme. E no privado é um procedimento caro, de mais de dois mil euros por cada tentativa.”

Aliás, Teresa Coelho espera que este trabalho alerte as autoridades competentes de que é preciso mais disponibilidade para este tipo de tratamentos no SNS. “Porque a melhor forma de agradecer aos doentes é a continuidade do nosso trabalho”, disse no discurso de agradecimento, ontem, na cerimónia de entrega do prémio. Isto significa que se estaria a apostar mais na prevenção, mas, como diz ao Expresso o presidente do júri do prémio Bial, o professor e médico Manuel Sobrinho Simões, “para os políticos, a cura traz mais votos que a prevenção”. Nem de propósito, na cerimónia de ontem estiveram vários representantes políticos, como o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o secretário de Estado do Comércio, João Torres, e o secretário de Estado da Saúde, Diogo Serras Lopes.

Peixes-zebra e o cancro

O Prémio Bial de Medicina Clínica, que é entregue de dois em dois anos desde 1984, não distingue apenas um trabalho de investigação, mas sim três: um vencedor, que recebe 100 mil euros, e mais duas menções honrosas de 10 mil euros cada uma. Uma delas foi para um trabalho sobre terapias para o cancro, coordenado por Rita Fior.

Tudo começou de forma muito pessoal, quando a mãe de Rita teve cancro do pulmão e ela se apercebeu de que não havia um teste que ditasse qual seria a terapia mais adequada àquele caso específico. Os tratamentos são praticamente iguais para todos os doentes e acontece que nem sempre funcionam. “Temos internet, vamos à Lua, temos uma vacina em menos de um ano, mas um doente com cancro não tem um teste para saber qual a melhor terapia para o seu caso?”, pergunta. A frustração foi tanta que decidiu começar a investigar a possibilidade de criar esse teste, usando, nada mais nada menos, que peixes-zebra. “O mais comum são os ratos, mas pode demorar meses, e como sou bióloga do desenvolvimento e embriologista já trabalhava com o peixe-zebra”, conta. Juntou-se a uma equipa multidisciplinar de mais 12 pessoas e conseguiu concluir que, “por o peixe ser muito pequeno, em duas ou três semanas é possível ter o resultado”, diz, confiante. “Agora só falta os médicos aderirem. Porque o meu primeiro objetivo com este estudo é ajudar um doente, e ainda nenhum beneficiou disto. Acertar no tratamento à primeira aumenta muito a qualidade de vida”, confessa.

Menos mortes por covid

A outra menção honrosa do Prémio Bial deste ano foi para o trabalho “Abordagem do doente crítico com covid-19”, desenvolvido por uma equipa de oito especialistas e coordenada por João João Mendes. “Foi a primeira vez que vi uma análise feita em cima do acontecimento”, diz Manuel Sobrinho Simões. De facto, este estudo foi feito em junho e julho de 2020 e incidiu sobre os “números da letalidade nos doentes críticos durante a primeira vaga, ou seja, o número de mortes sobre o número de casos, que eram muito mais baixos que noutros países”, diz João João Mendes. Concluíram então que em Portugal a taxa de letalidade era de 24%, quando noutros países era de 39% a 72%, e que isso se devia a três fatores. Primeiro, porque “a população se recolheu, havia menos casos e, por isso, menos afluxo aos hospitais. Ou seja, como comunidade, portámo-nos muito bem”. Depois, porque “houve um desfasamento em relação às vagas nos outros países e já sabíamos quais as melhores estratégias de tratamento”. E, por fim, “porque nos organizámos. Fomos buscar todas as camas possíveis, abrimos espaços para pôr mais camas e até tivemos pediatras a ajudar”, conta João João Mendes. De facto, conclui, “o SNS excedeu-se na sua capacidade de resposta”.

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