Katherine Richardson é considerada uma das maiores especialistas mundiais em alterações climáticas. Foi presidente da Comissão Dinamarquesa sobre Política de Alterações Climáticas, que apresentou um roteiro para a Dinamarca se tornar independente dos combustíveis fósseis até 2050. É uma das principais autoras do livro "Alterações Climáticas: Riscos Globais, Desafios e Decisões” (2011) e co-autora do livro “Os Nossos Oceanos Ameaçados” (2009). Katherine Richardson é investigadora principal no Centro de Macro-ecologia, Evolução e Clima da Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde o seu trabalho se centra na importância dos processos biológicos no oceano para a absorção de CO2 da atmosfera e como a biologia, incluindo a diversidade, contribui para o funcionamento dos oceanos no Sistema Terrestre. É co-autora da iniciativa Limites do Planeta, que definiu nove limites que não devemos ultrapassar para preservar a vida na Terra. Foi vice-presidente da Fundação Europeia da Ciência e presidente do Painel de Avaliação da Ciência do Sistema Terrestre no Conselho Europeu de Investigação. Já publicou mais de 100 artigos científicos e capítulos de livros.
Desde 23 de setembro, a CCH, organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press. A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH.
O Expresso publica semanalmente uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha, que está também a decorrer nas redes sociais e através de newsletters. Pode ver as 13 primeiras entrevistas e vídeos em: Will Steffen, Maria Fernanda Espinosa, Izabella Teixeira, Paulo Magalhães, Karl Burkart, Janene Yazzie, Kim Sang-Hyup, Hindou Ibrahim, Prue Taylor, Richard Ponzio, Klaus Bosselmann, Ana Barreira e Viriato Soromenho Marques. E pode ouvir a entrevista completa, em inglês, a Katherine Richardson AQUI.
A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.
A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como a Global Pact Coalition/Club de Jurists (França), a organização One Earth da Rockefeller Philanthropy (EUA), a MAHB – Millennium Alliance for Humanity and the Biosphere da Universidade de Stanford (EUA), o IIDMA - Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (Espanha), a Rede CPLP Ambiente (Portugal), três universidades brasileiras, a The Planetary Accounting Network, a organização Global Voice (EUA), a Australian Earth Laws Alliance (Austrália) ou a Coalition for Our Common Future (Coreia do Sul).
Ensina oceanografia biológica e é líder do Centro de Ciência da Sustentabilidade da Universidade de Copenhaga. Foi também presidente da Comissão Dinamarquesa sobre Política de Alterações Climáticas. Qual é a prioridade da sua investigação atual?
Embora eu ainda faça investigação em oceanografia biológica, investigo muito mais. Na Ciência do Sistema Terrestre tenho contribuído nos últimos 30 anos para tentar compreender o papel do oceano e dos processos biológicos. Por isso, sou mais uma especialista no Sistema Terrestre, a sua física, biologia e química, e as interações sociais que contribuem para as condições de vida na Terra. O foco da minha investigação atual é compreender o que causa as diferenças nos ecossistemas de plâncton marinho e como estas diferenças podem influenciar o desenvolvimento climático do planeta como um todo. E dirijo um novo projeto onde estamos a recolher amostras de sedimentos oceânicos perto da Islândia para analisar o ADN antigo. Assim, podemos descrever os organismos fossilizados que vamos encontrando, o que tem sido feito pelos cientistas durante anos, mas com a ajuda do ADN antigo podemos também descrever ecossistemas inteiros. Estamos também a fazê-lo em terra, em lagos, para que possamos descrever as mudanças climáticas que aconteceram nas amostras de sedimentos. E investigar como essas mudanças foram transportadas para terra através do oceano, ou como a Natureza e as populações humanas responderam a elas. Por isso temos também investigadores das ciências sociais envolvidos neste projeto.
É uma das cientistas de renome que desenvolveu os chamados Limites do Planeta. Como pode este enquadramento beneficiar o desenvolvimento sustentável?
O Relatório Brundtland (1987), que consagrou pela primeira vez o conceito de desenvolvimento sustentável, foi um grande passo em frente porque as pessoas começaram a pensar na sustentabilidade não só como sendo económica, mas também como ambiental e social. Infelizmente, em 1987 não era possível definir o que era realmente a componente ambiental. Mas podemos fazer isso hoje. Curiosamente, tivemos praticamente as sementes para o fazer antes, porque em 1972 obtivemos a primeira imagem da Terra a partir do Espaço, que mostra o nosso planeta sozinho no Espaço exterior, isto é, mostra claramente que não há um cordão umbilical, isto é, que os recursos da Terra que nos tornam ricos devem ser limitados, depois de os usarmos não vamos conseguir mais. Portanto, quando os políticos dizem que não vamos deixar que o aquecimento global provocado pela atividade humana seja superior a dois graus em comparação com a época pré-industrial, estão a estabelecer um limite, dizem que este é o tamanho do depósito de lixo que podemos utilizar na atmosfera. Sabemos exatamente quem utilizou a primeira metade deste depósito, e todo o exercício político é sobre quem deve ter direitos de uso sobre a última metade desse recurso.
Mas trata-se apenas de um problema de alterações climáticas?
Não, há nove Limites do Planeta e por isso trata-se também de biodiversidade, do buraco na camada de ozono, do consumo de água, do abate de florestas, do uso terra, da poluição química, das partículas (aerossóis) na atmosfera. Portanto, o que tentamos fazer com os Limites do Planeta para todos estes importantes processos no Sistema Terrestre, como a biosfera, a componente viva, o clima, a água, e assim por diante, é examinar, com base na evidência científica, qual é o chamado Espaço de Operação Seguro, qual é o limite até onde podemos levar estes diferentes processos. As pessoas tendem a equacionar os Limites do Planeta como pontos de não retorno ou limiares, mas não é disso que se trata. É mais como a tensão arterial. Se for muito alta não é garantido que haverá um ataque cardíaco, mas certamente aumenta esse risco. Por isso tentamos baixá-la.
Os Limites do Planeta são essenciais para definir o desenvolvimento sustentável?
Sim, ajudam a reconhecer os constrangimentos biofísicos dentro dos quais temos de chegar como, por exemplo, a produção alimentar ou a produção de energia. Por isso, falamos em transformar o sistema alimentar global de modo a produzirmos alimentos ricos em nutrientes para nove a 10 mil milhões de pessoas sem utilizar mais terra, reduzindo a quantidade de água, azoto e fósforo, e assim por diante. Assim, precisamos de uma revolução verde essencialmente na mesma área terrestre que temos hoje. Felizmente, muitos cenários estão a mostrar que isto será possível, respeitar os Limites do Planeta é absolutamente essencial para alcançarmos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e para definir os constrangimentos dentro das quais temos de desenvolver infra-estruturas e serviços críticos.
Portanto, a Ciência do Sistema Terrestre ajuda-nos a compreender que aquilo que fazemos em qualquer parte do Mundo tem impacto nos recursos naturais comuns que partilhamos. Quando pensamos no oceano, ele liga toda a Humanidade e funciona como um sistema interligado. Pode explicar algumas destas ligações e interações entre os Limites do Planeta, tal como entre o oceano e o Sistema Terrestre?
Há dois limites fundamentais. Um é o clima, que é apenas uma questão de quanta energia térmica recebe a Terra do Sol. O outro é a biosfera, ou seja, todos os organismos vivos, aquilo a que normalmente nos referimos como biodiversidade. O que torna o nosso planeta especial e diferente de todos os outros planetas que conhecemos é que tem vida. Não sabemos o que é a vida, mas sabemos o que ela faz: transforma e transporta elementos e moléculas. Assim, em qualquer momento, no Sistema Terrestre, as condições que temos são o produto da interação entre a vida e energia solar que entra no sistema. Então, porque temos oxigénio na atmosfera? Devido à biologia. Porque temos uma camada de ozono que nos protege da radiação UV? Devido à biologia. Portanto, a biologia é incrivelmente importante. E onde começou a vida? A vida começou no oceano, e aqueles pequenos organismos que produziram o oxigénio que temos na atmosfera vieram do oceano, o único lugar neste planeta onde há CO2 livre e ativo suficiente para explicar as grandes diferenças na sua concentração na atmosfera entre as idades do gelo e do não-gelo. E a biologia desempenhou um papel tremendo para mover o carbono da terra para o oceano e do oceano para a atmosfera. Por isso, a biosfera é muito importante. O oceano cobre quase dois terços do planeta (71%) e foi aí que a vida começou. Assim, a vida no oceano é crucial para as condições que temos em terra.
Que Limites do Planeta já foram ultrapassados e quais as consequências que poderemos enfrentar?
É possível que alguns deles tenham sido ultrapassados. O problema com os pontos de não retorno é que não vamos acordar uma manhã e ler numa notícia que um deles foi superado. As temperaturas, por exemplo, poderão estar tão quentes que não poderemos parar o derretimento do gelo na Gronelândia, mas levará milhares de anos até que esse gelo desapareça. Portanto, não poderemos realmente saber com toda a certeza qual é o dia em que um ponto de não retorno irá acontecer. O que podemos dizer é que temos a certeza de que estes pontos existem, porque há componentes da Terra como a floresta amazónica, o gelo do Ártico ou da Antártida Ocidental, os glaciares alpinos, os recifes de coral, etc., que existem ou não existem em função da temperatura, das condições climáticas. E também temos a certeza de que é a temperatura que os leva a passar de um estado para outro. O que não sabemos é exatamente em que temperatura os pontos de não retorno são ultrapassados. E o que sabemos é que quanto mais compreendemos o funcionamento do Sistema Terrestre, maior é o risco aparente de ultrapassarmos os pontos de não retorno a temperaturas relativamente baixas, muito próximas daquelas que temos hoje. E por cada aumento de temperatura que acontece, aproximamo-nos mais desses pontos.
O que podem os governos fazer para prevenir uma situação irreversível?
A primeira coisa que podem fazer é simplesmente baixar as emissões e desenvolver tecnologias para tirar o CO2 da atmosfera. Mas a segunda coisa é comunicação. De facto, lidamos com o risco climático de forma muito diferente da que lidamos com muitos outros riscos na sociedade. Por exemplo, no passado todos queriam ter segurança nos aeroportos por causa do terrorismo e agora é universal que temos um sistema de segurança. No fundo, a sociedade sentiu que era necessário reagir de forma muito agressiva a este tipo de ameaça. Mas a ameaça das alterações climáticas e a ultrapassagem dos pontos de não retorno são muito mais perigosas para a sociedade a longo prazo. Por isso, precisamos de ter melhor comunicação na sociedade sobre como lidar com estes riscos. Felizmente, esta discussão está a começar em muitos círculos diferentes, incluindo nos círculos financeiros, nos grandes bancos, que começam a reconhecer que devem mudar os seus investimentos se quiserem garantir a sua sobrevivência. E o governo do Reino Unido encomendou um relatório sobre a economia da biodiversidade que foi conhecido nesta semana. Chama-se Relatório Dasgupta e assume os Limites do Planeta. Assim, a Ciência do Sistema Terrestre também está a entrar nos relatórios económicos.
A pandemia da Covid-19 está a distrair-nos de outros problemas globais? Para prevenir futuras pandemias, não será necessário ter em consideração desafios como as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e os efeitos em cascata que vão ter?
Sem dúvida. Fui responsável na ONU pela preparação do relatório quadrienal de desenvolvimento sustentável global publicado em 2019. E analisámos como estão a ser cumpridos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. E antes da pandemia estávamos a sair-nos bastante bem em termos de mortalidade infantil, acesso da população mais pobre aos alimentos, etc. Mas há um grupo de objetivos em que nos afastamos a cada dia que passa, que inclui o aumento da desigualdade social, a pegada ecológica, as alterações climáticas e a perda de biodiversidade.
Porque é que o Sistema Terrestre e o seu software são globais, indivisíveis, e devem ser abordados como uma única unidade?
É tal e qual como quando vamos ao médico para nos prescrever algum medicamento para a cabeça, ele certifica-se de que esse medicamento não o faz interagir com algo que está a acontecer nos pés, no estômago, no sistema reprodutivo, etc. Portanto, reconhecemos no nosso próprio corpo que é a interação entre as diferentes partes que fazem de nós o que somos. Na Terra é exatamente a mesma coisa. O nosso planeta é também um sistema, e não compreenderemos o seu funcionamento em departamentos de Física, Química, Economia e outros a investigar em separado, isto é, se não estivermos atentos às interações entre as diferentes partes do Sistema Terrestre.
E como pode o reconhecimento do Sistema Terrestre como um sistema global intangível comum sem fronteiras, tal como proposto pela Casa Comum da Humanidade, ajudar-nos a melhor abordar os problemas globais que enfrentamos?
O que as alterações climáticas, a crise da biodiversidade e a crise do coronavírus nos mostram é que precisamos de gerir a nossa relação com o ambiente a nível global. Agora não temos um governo global, o que faz dele um desafio, mas não o torna impossível. E estamos numa fase de tentar diferentes estratégias para desenvolver ferramentas de governação que podem ser utilizadas para permitir esta gestão. Para isso, vamos ter de fazer mudanças em toda a sociedade, o que inclui a nossa compreensão da governação e a forma como lidamos com os recursos naturais comuns.
Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press