Sociedade

O prefácio da nova história do país também se escreve na diáspora. “Deixem a Bielorrússia respirar”, ouviu-se em Lisboa

Uma das manifestantes segura uma fotografia de um dos presos políticos na Bielorrússia
Uma das manifestantes segura uma fotografia de um dos presos políticos na Bielorrússia
Ana França/Expresso

Este domingo marca os seis meses desde que, num domingo também, centenas, depois milhares, depois muitos milhares de bielorrussos começaram a sair à rua para pedir o fim do regime de Alexandr Lukashenko, Presidente há 26 anos. A oposição pediu à diáspora que se reunisse. Em Portugal, apenas 20 cidadãos compareceram, mas carregaram as cores proibidas sobre os ombros

O prefácio da nova história do país também se escreve na diáspora. “Deixem a Bielorrússia respirar”, ouviu-se em Lisboa

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Pradmova. Prefácio, em bielorrusso, mas uma metáfora fácil de entender em qualquer língua. É o início de uma nova história, pelo menos é nisso que acreditam as pessoas que estiveram reunidas esta manhã no Rossio, em Lisboa, em protesto contra a violência policial, as prisões em massa e a repressão na Bielorrússia. Nunca foram mais de 20, mas traziam as cores de uma revolução que agora alimentam à distância. Elena Romanova, de 42 anos, chegou a Portugal em novembro de 2020 e é casada com um português que conheceu em Minsk há quatro anos.

Elena, de costas, para se ver a bandeira que dá prisão usar no seu país
Ana França/Expresso

Ele voltou na primavera, para tentar organizar as coisas, ela só conseguiu vir no fim do ano, devido à pandemia mas também por querer ficar mais um pouco e ver raiar o tal prefácio. “Ainda não aconteceu, esse novo começo com que todos sonhamos é-nos vedado por um Presidente que goza com quem se preocupa com a pandemia, manda prender o seu povo, lança o sangue dos seus cidadãos nas ruas”, diz ao Expresso.

Traz sobre os ombros uma bandeira vermelha e branca, que só foi a bandeira oficial da Bielorrússia durante quatro anos, entre 1991 e 1995, quando Lukashenko decidiu referendar o desenho da bandeira. Venceu a bandeira atual, com duas listas horizontais, uma verde, outra vermelha, e um padrão tradicional com vários triângulos do lado esquerdo, ao alto. “Com isto sobre os ombros não posso caminhar numa rua de Minsk, sou presa”, diz a designer de moda, ainda sem qualquer perspectiva de encontrar um emprego em Portugal, muito menos em pandemia.

A filha, de 14 anos, é uma “orgulhosa revolucionária” e foi também por ela que Elena Romanova decidiu deixar o país de vez. “A escola lá é duríssima, os professores severos, rudes, o ensino é muito restrito e eu quero que ela saiba que é possível expressar-se da forma que quiser, que esse é o objetivo da nossa luta, da luta dela, porque os jovens que estão agora a crescer na Bielorrússia não podem ficar esquecidos, estamos a falar de uma geração extremamente criativa, que está a ser calada”.

Segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, vivem 500 cidadãos bielorrussos em Portugal, uma informação que escapou totalmente a Katsiaryna Drozhzha, fundadora e presidente da associação Pradmova, até que os protestos começaram em casa e a comunidade quis agir no país de acolhimento. A associação só nasceu por causa das manifestações, muita gente lhe escrevia, porque fala perfeitamente português e está em Portugal desde 2016, a perguntar o que é que podiam fazer.

No início, tinha medo de falar sobre a informação que recebia todos os dias no seu telefone: mais amigos presos, expulsos das universidades, feridos. “Tinha medo que a minha família sofresse com o meu ativismo porque as autoridades não castigam apenas quem está diretamente envolvido, a família também se tornou um alvo, tive muitas insónias e pesadelos mas depois apercebi-me que é isto que tenho de fazer, os meus pais também vão às manifestações, eles também sabem o que têm de fazer”, diz.

Algumas das pessoas que se reuniram no Rossio, em Lisboa, para pedir à comunidade internacional mais atenção à opressão na Bielorrússia
Ana França/Expresso

No que toca àquilo que a comunidade internacional pode fazer, quase nada mudou desde o início dos protestos - é preciso fazer exatamente o mesmo que na altura em que tudo começou. “É importante que a União Europeia leve as sanções até às últimas consequências, não podemos estar analisar a lista de potenciais sancionados à luz dos interesses comerciais de empresas europeias ou outras”, diz a ativista formada em Relações Internacionais, de 26 anos, referindo-se à quarta ronda de sanções que está a ser discutida entre os vários líderes da União Europeia, uma lista de 88 pessoas e sete empresas ou entidades que, segundo a página do Conselho da Europa, foram “identificadas como responsáveis por repressão e intimidação de manifestantes pacíficos, membros da oposição e jornalistas”.

Não chega, todos o dizem. “É muito difícil fazer alguma coisa, a UE está de mãos atadas porque os amigos de Lukashenko têm dezenas de empresas extremamente lucrativas por toda a Europa e ajudam-no com dinheiro. Os europeus teriam de ir atrás daqueles a quem ele deu monopólios de produção e impor-lhes sanções, congelar tudo, mas está tudo tão interligado que a Europa pouco pode fazer”, diz, por outro lado, Siarghei Braitsau, bielorrusso residente em Portugal há 20 anos, dono de uma empresa de mudanças.

A filha, o genro e os netos ainda estão na Bielorrússia. “Eu sei que eles vão aos protestos e fico sempre muito assustado, já foram multados duas vezes, não é possível, com a economia naquele estado, uma família pagar o equivalente a 350 euros de cada vez que vai reclamar os seus direitos democráticos. Agora eles deixaram de ir, claro, porque não podem pagar e têm dois filhos para educar”, conta o bielorrusso de 52 anos.

Seis meses, 184 dias, cerca de 30 mil pessoas presas desde o início dos protestos na Bielorrússia, desde que o Presidente Alexandr Lukashenko voltou a ser eleito, a 9 de agosto, para um mandato que a oposição contesta. Gala Worm, antes de se casar com um luso-holandês era Gala Lukyanovich, também participou no protesto que marca o dia internacional de solidariedade com esta luta.

Lembra-se da primeira eleição de Lukashenko, do fim da União Soviética, de como as pessoas finalmente se tinham sentido donas das suas próprias vidas depois de anos de domínio russo. “Lembro-me muito bem do meu pai na casa de banho a ouvir rádios proibidas, toda a gente falava em sussurros, toda a gente tinha medo do vizinho delator e, com o passar dos anos, esse medo regressou”.

Tem 62 anos e fez de Portugal o seu lar há 22. Durante a Expo 98 deslocou-se ao país com um teatro bielorusso para tratar das luzes e já não foi mais capaz de sair. Ainda hoje é técnica de iluminação. Tem um chapéu branco com uma fita vermelha e refere, como Elena já tinha dito da sua bandeira, que o adereço não é permitido nas ruas do seu país. “Voltei lá agora, em dezembro, a minha mãe ainda está viva e não há uma pessoa que não tenha tido o neto, o filho, o irmão, a tia presos”, diz com os olhos no chão”.

Gala, bielorrussa de 62 anos, residente em Portugal há 22, veio à manifestação do dia internacional de solidariedade pelo seu povo porque se lembra de outros tempos de repressão e não quer lá voltar
Ana França/Expresso

As poucas vozes que estão reunidas vão gritando as frases que se ouvem nas ruas da Bielorrússia, primeiro na língua original, depois em português: “Liberdade para os presos políticos”, “Deixem a Bielorrússia respirar”, “Acreditamos, podemos e vamos vencer”, vai traduzindo Elena.

“Houve uma altura em que as notícias eram tão más que achávamos que não era possível ler pior, mas a cada dia há mais pessoas presas, notícias sobre campos para internar os presos políticos, onde é que está o fundo deste buraco?”. Katsiaryna Drozhzha, ao lado, acrescenta que esta não é uma questão de direita ou de esquerda, “não é político nem política, é uma guerra, é uma ocupação ilegítima de um país”. Lukashenko venceu as eleições com 80% dos votos mas nem a UE nem vários outros países ocidentais reconheceram a vitória. Já foi proposta uma nova eleição, com observadores internacionais, mas Lukashenko não admite a sua presença no país.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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