Sociedade

Porto. O recolher obrigatório aos olhos de quem se recolhe na rua

Porto. O recolher obrigatório aos olhos de quem se recolhe na rua
RUI DUARTE SILVA

“Cheguei a pensar que isto era um filme, tipo Hiroshima”. Vitor saiu da prisão há duas semanas e encontrou as ruas mudadas. Ao Expresso descreve como as imaginou, primeiro, e como as encontrou, depois, no primeiro dia do primeiro fim de semana de recolher obrigatório

Porto. O recolher obrigatório aos olhos de quem se recolhe na rua

Joana Ascensão

Jornalista

O nevoeiro, colado ao anoitecer e junto com a calçada escorregadia, faz parecer a madrugada de um inverno normal. Mas são pouco mais de cinco da tarde e as casas de vestidos de noiva, fechadas, iluminam a nova coleção, sem terem certezas sobre quando voltarão a existir casamentos. Nas vitrines das lojas é Natal. Caixas de presentes com cremes e champôs dentro intercalam com as sapatilhas da moda. E há os vídeos publicitários a passarem em algumas das montras da Rua de Santa Catarina, embora sem o som das músicas natalícias que, em anos normais, por esta altura, já estariam a irritar muita gente.

Um pombo tenta engatar uma pomba. Faz aquele glu glu no momento em que um homem e uma mulher, de sacos na mão, sintonizam o passo cada um de um lado oposto da rua. Olham de esguelha à espera de serem repreendidos.

“Neste sítio as pessoas esbarravam umas nas outras”, lembra Vitor (chamemos-lhe assim). Agora não. “Nem o som dos passarinhos se ouve”. A esta hora, sem ordens de recolhimento obrigatório a partir das 13h da tarde, muitas lojas ainda se mantinham abertas e pairava “o cheiro às castanhas com filas de pessoas para as comprarem”.

Passa um carro do lixo na rua de Passos Manuel, que faz um ângulo reto com a mais turística do Porto. Vitor anda por lá à procura de quem tenha lume para o cigarro. De gorro preto, máscara preta, blusão, calças e sapatilhas da mesma cor, é dos poucos que deambulam pelas ruas vazias da cidade no ponto em que ela começa a escurecer. Em parte, porque não tem bem para onde ir.

“Uma pessoa acaba de sair, quer endireitar a vida e leva com este choque”

Saiu faz 15 dias da prisão de Custóias, após cumprir a pena de fio a pavio. Diz que foi ao centro de emprego e à segurança social, como lhe disseram para fazer. “Tenho de aguardar que o processo, pedido com urgência, seja finalizado. Pode demorar, sei lá, um mês” até receber apoios do Estado, conta ao Expresso, enquanto passam dois carros da polícia a fazer vistoria às ruas e param junto de uma loja que ainda não tinha encerrado.

Não quer voltar a cometer crimes, repete várias vezes. Por isso, e já que sempre trabalhou na restauração, andou a fazer “quilómetros por dia” a bater à porta de casas onde pudesse servir às mesas ou lavar pratos. Encontrou portas fechadas, cartas do carteiro debaixo delas, sinal que não abrem há muito tempo. “Uma pessoa acaba de sair, quer endireitar a vida e leva com este choque”.

Aceitou falar de como as ruas lhe parecem mudadas. Conhecia-as bem, mas não as conhecia assim. “Cheguei a pensar que isto era um filme, tipo Hiroshima: pessoas com máscaras e com medo de ir à rua. Uma pessoa chega-se à beira de alguém e ele já está a dois metros. Não é por estar a pedir que sou um bicho”.

Entre conversas, fez-se noite na Passos Manuel. Apenas um homem, mais acima, partilha aquela rua comprida com Vitor. Ouvem-se chaves, há-de estar a sair do emprego. E há-de ter uma casa para ir. Vitor não sabe bem.

Após deixar a cadeia, chegou a dormir dois dias na rua. Rapidamente aprendeu as manhas de como se juntam migalhas de dinheiro para pagar ao dia um quarto que alugou na Boavista por 15 euros. Almeja mais, reafirma. “Quero trabalhar, já nem digo ter uma família, mas uma casa”. Quem sabe, uma casa até lhe dê vontade de confinar, coisa que um teto não faz. Mas naquela rua que já foi casa vão confinar pessoas nestes dias de recolher obrigatório. Por isso, hoje chama-lhe “nua”, “deserta” e “triste” - por esta ordem.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jascensao@expresso.impresa.pt

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