Sociedade

O arguido que admitiu ter errado, por ter dito o que não devia. Terminou o primeiro dia do julgamento do caso Tancos

O ex-fuzileiro João Paulino à chegada ao tribunal de Santarém, para a sessão da tarde
O ex-fuzileiro João Paulino à chegada ao tribunal de Santarém, para a sessão da tarde
PAULO CUNHA/Lusa

O primeiro dia do julgamento do caso de Tancos terminou com o depoimento de Filipe Sousa, o militar do Exército que terá passado ao tio Valter Abreu e a João Paulino, autor confesso do assalto, informação vital sobre as condições de segurança dos paióis. O julgamento continua esta terça-feira, com o depoimento de João Paulino

O arguido que admitiu ter errado, por ter dito o que não devia. Terminou o primeiro dia do julgamento do caso Tancos

Rui Gustavo

Jornalista

Filipe Sousa admitiu esta terça-feira à tarde ter errado ao falar disso com o tio, Valter Abreu e João Paulino, o autor confesso do assalto.

Quando foi detido, o arguido negou ter dito a Paulino que os paióis não tinham condições de segurança, tendo até dito ao juiz João Bártolo que aquelas instalações militares eram bem guardadas. Agora diz o contrário, e atribui as declarações anteriores a uma estratégia incorreta do advogado que então o representava e que também defendia o tio. "Por isso dispensei-o", disse hoje em tribunal.

Esta contradição levou o advogado de João Paulino a solicitar a anulação das primeiras declarações de tio e sobrinho.

Filipe Sousa, que está agora na GNR diz que não contou qualquer segredo e que a fata de condições era visível do exterior. "Se fosse lá nessa altura qualquer pessoa podia ver as câmaras de vigilância no chão, sem fios, ou cobertas de silvas. Não há segredos."

Segundo o Ministério Público, foi Valter Abreu, também conhecido como "pisca", que por causa de uma dívida de mil euros relacionada com tráfico de droga disse a João Paulino, autor confesso do assalto, que os paióis de Tancos eram fáceis de assaltar e indicou o sítio exato por onde entrar. "Pisco" obteve a informação através do sobrinho, Filipe Abreu, furriel do exército, que prestava serviço em Tancos.

O tribunal forneceu aos arguidos viseiras, que tornam os depoimentos impercetíveis. Com alguma dificuldade em fazer-se entender, Valter Abreu nega ter alguma vez devido mil euros a João Paulino e desmente qualquer envolvimento em tráfico de droga. Confrontado pelo juiz com declarações anteriores em que admitia ter traficado, diz que foi mal aconselhado pelo advogado. "Para não ser preso admitiu a um juiz que traficava?", espantou-se o magistrado.

Valter admite que o sobrinho lhe descreveu as falha de segurança em Tancos e que comentou esse facto com João Paulino, mas nega ter tido algum papel no assalto. "Nunca fui a Tancos", insiste. Nega ainda ter desligado o telemóvel na noite do assalto e não tem qualquer explicação para o aparelho ter sido ligado na autoestrada, ja depois do assalto.

O juiz Nélson Barra pediu as declarações de Valter Abreu na fase de instrução, para o confrontar com o facto de nessa altura ter confessado o seu envolvimento, crime que agora nega. "É tudo.mentira", insiste. O juiz parece não se convencer. "Se não participou, como é que sabe tantos detalhes?"

Diz que só confessou os crimes de que é acusado por indicação do advogado, "Fernando Belchior", um ex-inspetor da PJ que lhe foi sugerido por essa mesma polícia: "eles telefonaram, ele apareceu." Foi este advogado que lhe pediu que "incriminasse" João Paulino e que se autoincriminasse. "Porquê? O que iria ganhar com isso?", admirou-se o atual advogado, Gonçalves Oliveira. "Disse-me que me safava, que não iria preso ".

Valter Abreu recusou-se a responder às perguntas do advogado do sobrinho, Filipe Abreu. "Peço desculpa, mas estou nervoso", disse.

A sessão da manhã

Na sessão da manhã, o advogado Germano Marques da Silva, que defende o arguido mais mediático do processo, o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, tinha dito no tribunal de Santarém que a acusação contra o ex-governante é um "mau exemplo do que deve ser uma acusação" e que em vez de conter uma narração dos factos "é uma fábula", cujos "propósitos a História há de contar um.dia". O penalista diz que a ligação entre a recuperação das armas e o incêndio de Pedrógão - o Ministério Público alega que Azeredo Lopes queria recuperar as armas a todo o custo porque o Governo estava a lidar com as consequências negativas da tragédia - é "obscena e imoral" e não passa de um comentário político.

Germano Alves acusa ainda o MP de não ter tido a "inteligência" de perceber que para o Governo seria indiferente que fosse a PJ ou PjM a recuperar o material de guerra".

Antes, os advogados de João Paulino, Melo Alves, e do ex-porta-voz da Polícia Judiciária Militar (PJM) Vasco Brazão, Ricardo Sá Fernandes, tinham-se desentendido, com este último a dizer que a credibilidade do autor do assalto "é próxima do zero " e que "não" acredita que tenha feito qualquer acordo com a GNR ou a PJM. Melo Alves reagiu de imediato acusando o colega de estar a "discutir provas" em vez de "apresentar factos". Sá Fernandes alega que este é um momento de "liberdade" do advogado.

Sá Fernandes admite que o major Vasco Brazão "cometeu um erro" ao não ter avisado o Ministério Público (MP) de que estava a preparar uma.operação para recuperar as armas, mas nega qualquer acordo com João Paulino. "Pode ter cometido um erro, mas seguramente que não faz acordos com traficantes de armas."

Fernando Santos, acusado pelo MP de ter sido um dos autores do assalto, nega ter estado em Tancos no dia do golpe. O advogado de outro acusado, Hugo Santos, diz por seu turno que o seu cliente contará "a verdade" e acusa a a PJ de ter feito um trabalho "pífio ". Já o advogado de Bruno Ataíde, o militar da GNR que terá feito a ponte entre Paulino e a PJM, diz que o seu cliente se limitou a fazer tudo para recuperar as armas.

Os arguidos são identificados um a um e quase todos pretendem prestar declarações. Uma exceção: Jaime Oliveira, que se apresentou como chefe de cozinha, e é acusado de ter participado no assalto, não quer responder às perguntas dos magistrados e dos advogados. Quanto ao militar da GNR Lima Santos, diz que só falará se conseguir abrir os cd que lhe foram fornecidos pelas autoridades com as acusações do processo.

Advogado de Paulino acusa PJ

Durante a sessão da manhã, o advogado de João Paulino responsabilizou a PJ pelo assalto. Melo Alves fez uma exposição inicial em que responsabiliza a PJ por não ter evitado o assalto. "Tinham informação de que o assalto iria decorrer e durante 80 dias, em vez de avisarem o quartel ou fazerem qualquer diligência para evitar o assalto, disseram a Paulo Lemos que deixasse o assalto ocorrer e arranjasse uma desculpa para não participar".

Melo alves defendeu o "arrependimento" do seu cliente, sublinhado que foi decisivo para a descoberta da verdade e que impediu que o material furtado fosse "parar ao mercado negro".

Para o advogado, "legal ou ilegalmente" foi lhe prometido pela polícia que não seria perseguido criminalmente se entregasse as armas.

Apesar da limitação de lugares decorrente da covid-19, a sala do julgamento do chamado "roubo do século" está cheia, com os advogados separados uns dos outros por uma espécie de cubículos de acrílico.

Á entrada do tribunal, Manuel Ferrador, advogado do coronel Luís Vieira, ex-diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM), tinha defendido que o seu cliente terá de ser absolvido. "Era o que faltava estes arguidos serem condenados por associação criminosa." Para o advogado, Luís Vieira considerava que a força policial que liderava tinha a competência da investigação e que o despacho da ex-Procuradora Geral da República que deu a investigação à PJ civil "é ilegal".

O advogado Carlos Melo Alves insistiu, por seu turno, que o seu cliente, João Paulino, devolveu "todo" o material de guerra que tinha na sua posse. Apesar disso, entre o que Paulino, autor confesso do assalto a Tancos, devolveu e a lista do exército sobre o que foi furtado do paiol continuam a faltar 30 explosivos de alta potência. O advogado diz que a confissão do seu cliente "pressupõe arrependimento" e que espera beneficiar do que "está previsto na lei".

Ricardo Sá Fernandes, advogado de Vasco Brazão, ex-porta-voz da PJM, confirmou a notícia avançada pelo Expresso de que pedirá um depoimento por escrito do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Azeredo Lopes, ex-ministro da Defesa que se demitiu na sequência do caso, recusou-se a prestar qualquer declaração à entrada do tribunal. O advogado que o representa, Germano Marques da Silva, o jurista mais citado em todos os acórdãos dos tribunais portugueses, também não quis falar.

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