Exclusivo

Sociedade

“Considerando o investimento, o retorno científico da Estação Espacial Internacional é fraco”. Astrofísico Manuel Paiva

Ao longo de 20 anos, a Estação Espacial Internacional esteve ocupada ininterruptamente por pelo menos duas pessoas
Ao longo de 20 anos, a Estação Espacial Internacional esteve ocupada ininterruptamente por pelo menos duas pessoas
NASA / Getty Images

No dia em que se celebram 20 anos da presença contínua de humanos no espaço, o astrofísico Manuel Paiva reflete sobre o legado e o futuro da Estação Espacial Internacional, a estrutura mais cara jamais criada pelo Homem. O principal papel, defende, “será a preparação de uma viagem a Marte”

“Considerando o investimento, o retorno científico da Estação Espacial Internacional é fraco”. Astrofísico Manuel Paiva

Nelson Marques

Jornalista

Foi a 2 de novembro de 2000 que os três primeiros astronautas – o norte-americano Bill Shepherd e os russos Yuri Gidzenko e Sergei Krikalev – chegaram à Estação Espacial Internacional (EEI) para uma missão de 136 dias. Desde então, o mais importante laboratório científico “extraterrestre” recebeu 240 homens e mulheres, que realizaram milhares de investigações a bordo. Terão compensado os mais de 125 mil milhões de euros que a complexa estrutura custou? O astrofísico Manuel Paiva, professor jubilado da Universidade Livre de Bruxelas que coordenou algumas dessas experiências tem dúvidas.

Que legado é que a Estação Espacial Internacional (EEI) nos deixa nestes 20 anos? De que forma beneficiou a sociedade?

As aplicações industriais foram limitadas. No domínio científico, a EEI contribuiu para desenvolver um novo ramo da medicina que estuda o organismo em imponderabilidade (as condições de ausência de peso). O legado principal talvez seja a demonstração que é possível estabelecer colaborações entre países que têm relações políticas tensas. Os astronautas transmitem esse sentimento aos adolescentes, que a exploração espacial entusiasma. Muitos deles escolherão carreiras científicas cuja falta de vocações na Europa é inquietante.

Considerando o investimento astronómico que foi feito no projeto, acima dos 125 mil milhões de euros, há quem considere que o dinheiro podia ter sido melhor empregue noutras áreas. Concorda?

Estou de acordo que o retorno científico em função do investimento é fraco, mas a EEI não foi planeada por cientistas como foi o caso do telescópio espacial Hubble ou do acelerador de partículas LHC do CERN, em Genebra, que custaram dez vezes menos e cujas descobertas conduziram a vários Prémios Nobel da Física. Se a EEI não tivesse sido construída, como é que essa quantia teria sido utilizada? Não conheço a resposta, mas é importante lembrar que os primeiros planos para uma estação espacial foram de ordem militar no quadro da “Iniciativa de Defesa Estratégica”, mais conhecida como a “Guerra das Estrelas de Reagan”. Se a totalidade dos créditos associados à EEI tivessem sido destinados à investigação científica, eu teria aplaudido, se bem que a minha investigação tivesse tomado outro rumo.

Coordenou experiências da Agência Espacial Europeia realizadas na EEI. O que é que investigaram?

As investigações que coordenei consistiram principalmente em compreender o funcionamento do sistema cardiorrespiratório em imponderabilidade (a sensação de ausência de peso no espaço). Escrevi o livro “Como Respiram os Astronautas”, editado pela Gradiva, sobre essas experiências. O teste que mais estudei consiste em respirar oxigénio puro em continuo e na análise da concentração de nitrogénio durante expirações sucessivas. Pensava-se que o peso do pulmão influenciava os resultados do teste, contrariamente ao resultado que eu tinha obtido na minha tese de doutoramento. A verificação só podia ser feita em imponderabilidade. Em 1972 propus à NASA a realização do teste na estação espacial Skylab. Finalmente foi realizado em 1991 no Laboratório Europeu “Spacelab” e os resultados confirmaram as minhas previsões. O teste tem sido utilizado em pediatria e em várias patologias respiratórias, mas os resultados mais interessantes foram obtidos com doentes que sofrem de fibrose cística. Atualmente, o mesmo teste é efetuado no Hospital Universitário da Universidade Flamenga de Bruxelas, em pacientes com covid-19.

Que papel poderá ter a EEI nos próximos anos?

O papel principal será a preparação de uma viagem a Marte, para a qual ainda não se conhece o suficiente sobre a adaptação do organismo a longos períodos em imponderabilidade, ou o efeito das radiações, sem negligenciar o aspeto psicológico de tal missão, muito mais complexa do que transparece em geral nos media. Muito vai depender do próximo presidente dos EUA. Atualmente, assiste-se à robotização da exploração espacial, em particular de Marte, o que diminui a importância dos astronautas, mas estes formam um “lobby” poderoso. O custo de uma missão automática é cerca de cem vezes menor do que o de uma missão tripulada e os resultados têm sido espetaculares, sobretudo no domínio da busca de vida passada ou mesmo presente em Marte. É importante frisar que os centros de decisão estão a mudar com a privatização do espaço.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: nmarques@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate