Sociedade

Pegada antibiótica terá impactos graves na saúde

Pegada antibiótica terá impactos graves na saúde
Getty Images

Projetos Expresso. Alerta O uso excessivo destes medicamentos é um problema mundial que precisa de ser combatido com melhor informação, avisam os especialistas. Até 2050, prevê-se que o consumo suba cerca de 200%

Francisco de Almeida Fernandes

Apesar de Portugal estar abaixo da média europeia no consumo de antibióticos, indicadores como a taxa de resistência a estes fármacos em território nacional são preocupantes. José Artur Paiva, responsável pelo Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA), assume que esta é a grande prioridade do plano de ação da Direção-Geral da Saúde (DGS) e recorda que através da sensibilização dos profissionais de saúde e da definição de orientações tem sido possível diminuir o consumo de antibióticos indutores de maior resistência. “Temos tido, desde o nascimento do PPCIRA, em 2013, e até 2018-2019, uma redução no consumo de quinolonas de cerca de 40%”, assinala, sublinhando, contudo, que ainda há muito por fazer.

O principal receio de médicos e cientistas prende-se com uma crescente resistência do organismo ao efeito destes medicamentos, desenhados para combater infeções bacterianas. Isto significa, aponta Sara Cerdas, que “chegámos a uma altura das nossas vidas em que temos doentes com infeções resistentes a qualquer tipo de antimicrobiano conhecido, e isso é grave”. “Vamos começar a ter infeções que não iremos conseguir tratar, o que pode resultar na morte”, alerta a eurodeputada do PS. A situação é particularmente alarmante porque o problema não está concentrado num medicamento específico, que afete apenas uma “franja da sociedade, mas em medicamentos e substâncias que são utilizados numa panóplia de intervenções na saúde humana”.

Mas o que está na origem desta imunidade negativa aos antibióticos? José Artur Paiva, que é também intensivista no Hospital de São João, no Porto, explica que a resistência é influenciada pela utilização excessiva de antibióticos, cujo consumo aumentou, entre 2000 e 2015, cerca de 65% à escala mundial, à boleia de países de baixo e médio PIB. Em países com mais elevada produção de riqueza, como os Países Baixos ou a Alemanha, o consumo tem vindo a baixar ao longo dos anos. “A preocupação é maior porque, quando extrapolamos de 2015 para 2030, vemos que, se nada fizermos, o consumo de antibióticos vai aumentar 200%. Esta realidade é extremamente preocupante”, avisa. Em Portugal, a elevada taxa de resistência é explicada não pela utilização excessiva destes medicamentos, mas pelo tipo de substâncias que eram prescritas massivamente até 2015, as quinolonas. O responsável pelo PPCIRA — que participará no último debate do ciclo Imunes, promovido a 22 de outubro pelo Expresso com a MSD, dedicado a este tema — explica que “podemos ainda estar a pagar a fatura” do consumo de antibióticos muito indutores de resistência. Por outro lado, acrescenta que o país apresenta uma das mais “elevadas taxas de infeção associada a cuidados de saúde”, que potenciam a transmissão, através do contacto físico, de bactérias resistentes. “É um ciclo vicioso que temos de quebrar.”

Existe, porém, uma dificuldade adicional na reversão deste problema: a utilização generalizada de antibióticos em sectores como a agropecuária, a veterinária e até na construção. José Neves, infecciologista do Hospital de Vila Franca de Xira, afirma que muitas das doenças que surgem hoje têm origem animal, que se explica pela utilização de antibióticos para “engordar os animais”. “Cerca de 80% dos antibióticos são usados na agropecuária, e não no uso humano”, revela, defendendo que é urgente regulamentar e reduzir esta prática. Sara Cerdas, que acompanhará os dois médicos no debate ‘Imunes: quando o corpo precisa de ajuda, os antibióticos’, partilha o receio e explica que esta é uma das prioridades da União Europeia não só através do Programa Europeu para a Saúde, que integra como relatora, como da iniciativa Farm to Fork (‘da quinta para a mesa’, em tradução livre). “Queremos reduzir e eliminar a presença de componentes antimicrobianos no nosso ambiente”, diz, sublinhando que “é um dos principais problemas de saúde pública”. “Podemos falar numa pegada antibiótica”, diz José Artur Paiva.

Informação pode curar

Paulo Bettencourt, coordenador de medicina interna do Hospital CUF Porto, explica que a resolução do problema da resistência aos antibióticos passa necessariamente por mais e melhor informação. “Houve, nos últimos 15 anos, um esforço grande de formação; os médicos estão hoje muito mais sensibilizados”, defende. Mas a falta de literacia em saúde na população portuguesa é ainda um obstáculo, que se manifesta através da “pressão dos doentes” para a prescrição destes medicamentos mesmo quando, do ponto de vista clínico, não se justifica. “Portugal é um dos países que na área da literacia da saúde ainda está muito atrás, muita gente pensa que os antibióticos dão para tratar vírus e outros microrganismos que não bactérias”, concorda José Neves.

Esta falta de informação prejudica a saúde da população, que descuida a prevenção e desconhece, muitas vezes, a importância de seguir à risca as indicações terapêuticas dos profissionais. É também por isso que iniciativas como o PPCIRA, programa de saúde com objetivos semelhantes a planos de ação contra as hepatites virais ou diabetes, são essenciais, procurando melhorar a informação disponível e atuar onde é preciso. No caso da diabetes, por exemplo, o sucesso do respetivo programa nacional mede-se através de indicadores como a redução das mortes associadas à doença, em queda desde 2012. Apesar de existir ainda um longo percurso até à redução da incidência na população portuguesa, a sensibilização e educação sobre o tema permite caminhar na direção certa.

O peso da diabetes

9,9%
é a taxa de incidência da diabetes em Portugal, superior à média europeia, fixada em 6,4%

30%
é a percentagem da população portuguesa com diabetes e que falta diagnosticar

3,8%
das mortes em Portugal são diretamente causadas pela diabetes, que tem efeitos indiretos que contribuem para episódios de AVC e doenças cardíaca e renal

Investir na literacia em saúde

Essencial para melhorar a esperança média de vida, mas também a qualidade de vida dos humanos, a medicina está hoje equipada com as melhores armas de combate às diferentes doenças que afetam a humanidade. No entanto, este arsenal de combate aos malefícios que põem em causa a saúde torna-se menos eficaz quanto menor for a literacia da população relativamente à saúde e ao bem-estar. Em Portugal, o conhecimento geral dos doentes sobre prevenção, tratamento e cuidados de saúde no geral é ainda baixo, sublinham os especialistas. Por essa razão, o Expresso associou-se à MSD para iniciar, em julho, um ciclo de quatro conversas sobre temas que preocupam a comunidade médica e que têm impacto direto na vida dos portugueses. O projeto Imunes debateu, nos últimos meses, questões como o cancro e a prevenção, a interligação entre condições como a diabetes e o colesterol, mas incidiu também sobre a importância das vacinas. Em contexto pandémico, a aposta na literacia em saúde reveste-se de especial importância, para que todos possam lutar por uma maior imunidade coletiva. O ciclo de debates culmina na conversa Imunes: Quando o Corpo Precisa de Ajuda, os Antibióticos, agendada para 22 de outubro, pelas 18h, com transmissão em direto na página de Facebook do Expresso.

Textos originalmente publicados no Expresso de 17 de outubro de 2020

Relacionados

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas