Além dos assistentes, nomeadamente vários advogados que trabalhavam na PLMJ cujos e-mails foram pirateados, e das intervenções iniciais dos arguidos, apenas foram ouvidas duas testemunhas da Polícia Judiciária até ao momento, o inspetor José Amador, e o especialista em informática da PJ José São Bento, que voltará terça-feira a depor em tribunal.
Este primeiro mês tem sido centrado sobretudo na apresentação, pelo Ministério Público, de documentos que sustentam a acusação, e na sua confirmação por parte das testemunhas, bem como na obtenção de esclarecimentos por parte da defesa dos arguidos. O julgamento é conduzido por um coletivo de juízes liderado por Margarida Alves. Rui Pinto acompanhou todas as sessões, tirando notas, mas só falou na primeira.
1. Um ataque sem precedentes
A procuradora Marta Viegas, representante do Ministério Público no lado da acusação, tem procurado mostrar, pela apresentação de sucessivos documentos, que os ataques informáticos imputados a Rui Pinto configuram um ato de pirataria (ou “hacking”) sem precedentes em Portugal, pelo número de alvos, pelo volume de informação extraída, pela continuidade no tempo (entre final de 2015 e início de 2019) e pelas técnicas usadas para prosseguir esses objetivos.
As testemunhas da Polícia Judiciária que até ao momento falaram em julgamento afirmaram (como consta da acusação e dos autos do processo) que no material apreendido a Rui Pinto em Budapeste (a 16 de janeiro de 2019) havia e-mails de dezenas de advogados da PLMJ (só a caixa de correio de João Medeiros ocupava 18,89 gigabytes), mas também documentos da sociedade Vieira de Almeida, acessos à Procuradoria-Geral da República, informação da Federação Portuguesa de Futebol (em particular da plataforma Score, mas também a caixa de correio de um elemento da FPF, com 26 gigabytes), um agendamento de uma reunião da Europol, ficheiros com dados de contas bancárias e respetivas senhas, entre outros alvos.
2. As ferramentas encontradas pela PJ
O especialista da PJ José São Bento explicou detalhadamente o que encontrou no disco que a Polícia Judiciária baptizou como RP3, um disco externo apreendido a Rui Pinto na sua detenção em Budapeste, que virtualizou um computador, alojando 488 caixas de correio eletrónico de diversas entidades (entre as quais a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol, mas também várias instituições que não são parte no presente processo).
O especialista da PJ, que analisou aquele disco entre abril e setembro de 2019 (até ao prazo-limite para ser feita a acusação a Rui Pinto), encontrou “software” que permite explorar vulnerabilidades dos sistemas informáticos, como o MetaSploit Framework e o Armitage, mas também ferramentas para ocultar a origem dos ataques e navegadores que otimizam a anonimização do utilizador, como o Tor e o Epic.
Segundo o especialista da PJ, o disco RP3 apresentava igualmente um repositório de mais de 300 ficheiros HTML (páginas de Internet) que simulavam graficamente as páginas de várias entidades para serem usados em ataques de "phishing" (captura de credenciais de acesso).
3. Advogados relatam a experiência traumática de final de 2018
Ouvidos como assistentes, os advogados João Medeiros, Rui Costa Pereira e Inês Almeida Costa (atualmente na Vieira de Almeida, mas antes na PLMJ) e ainda Luís Pais Antunes (ainda presidente da PLMJ) relataram durante várias horas o drama vivido nos últimos dias de 2018, quando tomaram conhecimento de que as suas caixas de correio eletrónico tinham sido pirateadas, e algumas delas publicadas no blog “Mercado de Benfica”. João Medeiros, um dos principais alvos, declarou ter passado por consultas com uma psicóloga, mas reconheceu que o escritório de advogados, apesar do ataque, não perdeu clientes.
4. Rui Pinto: a defesa em suspenso
Rui Pinto fez uma declaração inicial logo a 4 de setembro, reiterando não se considerar um “hacker”, não ter atuado por dinheiro, e revelando que o seu trabalho como “whistleblower” (denunciante) está terminado. Não entrou em pormenores sobre os detalhes da acusação. A sua defesa (que entregou ao tribunal uma longa contestação antes de o julgamento arrancar) está nesta fase limitada. Os seus advogados, Francisco Teixeira da Mota e Luísa Teixeira da Mota têm aproveitado para questionar a atuação da Polícia Judiciária na investigação e na operação de detenção de Rui Pinto, mas só numa fase posterior do julgamento poderá o próprio arguido responder perante as concretas acusações de que é alvo e explicar, se assim o entender, o que a PJ encontrou nos discos que lhe foram apreendidos.
5. Aníbal Pinto: era um acordo, não uma extorsão
Aníbal Pinto, que em outubro de 2015 foi indicado como Rui Pinto como seu representante legal para conversações com a Doyen, é arguido neste processo e acusado de co-autoria de um crime de tentativa de extorsão. Aníbal Pinto fez uma intervenção inicial bem mais longa que a de Rui Pinto, tendo procurado desmontar a acusação com o argumento de que só entrou nas conversações com a Doyen procurando intermediar um contrato de prestações de serviços, pelo qual Rui Pinto seria contratado pela Doyen como especialista informático. Aníbal Pinto sustenta que tanto assim é que fez questão de apenas ter como interlocutor o advogado então apontado pelo presidente da Doyen, Pedro Henriques. Aníbal Pinto defende que abandonou as conversas quando se apercebeu do desinteresse da Doyen em concretizar o referido contrato, tendo advertido Rui Pinto para o risco de ser acusado de tentativa de extorsão. E acusou Pedro Henriques de ter violado os seus deveres de sigilo como advogado ao expor as negociações à PJ.
6. As falhas da PJ expostas
Os depoimentos de José Amador, inspetor da Polícia Judiciária que liderou a investigação a Rui Pinto entre outubro de 2015 e janeiro de 2019, e que foi buscar o arguido a Budapeste na sua extradição para Lisboa (março de 2019), confirmaram vários pontos da acusação do Ministério Público mas também puseram a nu um conjunto de falhas na atuação das autoridades portuguesas.
José Amador admitiu ter contado com a colaboração do advogado Pedro Henriques, que trabalhava com Nélio Lucas, da Doyen, para um contacto com as autoridades russas, e também admitiu que o mandado de busca para Rui Pinto indicava uma morada diferente daquela em que o arguido foi de facto detido. José Amador assumiu ainda que ao receber os discos apreendidos a Rui Pinto quando do dia da sua extradição não verificou o saco de provas que lhe foi entregue pelas autoridades húngaras, pelo que só em Lisboa veio a verificar que faltavam duas das 26 provas e as 24 que tinha transportado de Budapeste para Lisboa tinham os selos violados (porque entretanto tinham sido abertas pelas autoridades húngaras).
7. Um possível trabalho em rede
O inspetor José Amador admite que “não é fácil dizer se [o conjunto de ataques informáticos na base da informação encontrada nos discos] é obra de uma pessoa ou várias”. O inspetor notou que o material analisado pela PJ aponta para “um modus operandi específico”, e “uma lógica de alvo direcionada”. “Que tem a chancela de uma pessoa tem. Se teve a colaboração de outras não sei dizer”, declarou. Foi confrontado pela defesa de Rui Pinto com o facto de a máquina virtualizada num discos se apresentar com data e hora de Sarajevo, e não de Budapeste, mas desvalorizou o facto.
8. Rui Pinto: da não colaboração à colaboração
Segundo os testemunhos de José Amador, Rui Pinto teve numa fase inicial, após a sua chegada a Lisboa, uma postura de não colaboração com a investigação, perante a falta de garantias de que uma eventual colaboração não pudesse servir para o incriminar. O arguido chegou a sugerir a sua colaboração a nível internacional através do Eurojust, o que, segundo José Amador, não teria enquadramento legal. Todavia, no final do seu depoimento o inspetor da PJ admitiu que Rui Pinto acabou por se mostrar disponível para colaborar, acedendo a permitir às autoridades portuguesas o acesso aos discos ainda bloqueados, embora optando por não entregar as respetivas senhas.
A defesa da Doyen, a cargo da advogada Sofia Ribeiro Branco, enfatizou, logo no arranque do julgamento, a não colaboração de Rui Pinto no presente processo, notando que eventuais colaborações noutros processos são irrelevantes para a apreciação dos atos pelos quais é acusado neste julgamento (incluindo um crime de tentativa de extorsão da Doyen).
9. Um processo que vai do Football Leaks ao Mercado de Benfica
A investigação arrancou em outubro de 2015 por causa da revelação de documentos da Doyen e do Sporting no blog Football Leaks, e por causa da alegada tentativa de extorsão à Doyen, mas a acusação do Ministério Público incluiu no processo os ataques à sociedade de advogados PLMJ ocorridos no final de 2018 e que expuseram no blog Mercado de Benfica extensa documentação daquela firma, em especial da caixa de correio do advogado João Medeiros. Embora a PJ tenha detetado nos discos apreendidos a Rui Pinto outros alvos, acabou por não conseguir tratar essa informação nas suas perícias a tempo de alargar a acusação. O Benfica, contudo, não é assistente no presente processo.
10. O julgamento vai ser demorado
O que o primeiro mês já permitiu ver é que o julgamento será demorado e será praticamente impossível terminá-lo nas sessões agendadas até 10 de dezembro. Há 120 testemunhas para ouvir e até ao momento apenas foram ouvidas duas. Esta semana serão ouvidas mais duas testemunhas da PJ indicadas pelo Ministério Público. As sessões decorrem normalmente às terças, quartas e quintas-feiras entre as 9h30 e 17h30 (com intervalo entre as 12h30 e 14h).
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