"Foi uma mão cheia de nada, mais valia o Governo não ter anunciado nada. Essa solução já tinha sido encontrada, e quem podia fazer essa alteração, já o tinha feito", frisa o presidente da associação de discotecas, lembrando que a única alteração foi as empresas não terem para este efeito de alterar o Código de Atividade Económica (CAE).
"É uma medida que não nos ajuda em nada, é só para a gente rir", alega por seu turno Hugo Cardoso, responsável da Associação de Bares, Discotecas e Similares. "Várias casas em Lisboa já fizeram tentativas dessas a ver se ajuda, e em muitos casos não resultou. Estamos todos a disputar os mesmos clientes dos cafés, que para eles já é difícil. A verdadeira discoteca não consegue abrir nestas condições".
A "grave crise que as discotecas estão a passar" é generalizado pelo país, e além de Lisboa atinge de forma particularmente aguda o Algarve, onde "muitos destes espaços não vão ter hipóteses de recuperar", segundo frisam as associações. "No norte, por incrível que pareça, as coisas não correm tão mal porque a Polícia está a deixar as pessoas trabalhar sem criar muita pressão. No meio desta crise toda, tem de haver esta sensibilidade, senão vai tudo morrer", sustenta Hugo Cardoso.
Lust in Rio é excepção
Um dos raros exemplos de sucesso na reconversão de uma pista de dança ao ar livre num restaurante foi o do Lust in Rio em Lisboa, na zona do Cais do Sodré e à beira do Tejo (a antiga discoteca Meninos do Rio).
A reconversão foi feita antes da resolução do Governo, o restaurante Lá no Rio está aberto desde 13 de julho uma vez que o estabelecimento já tinha a possibilidade de exercer esta atividade. O terraço junto ao rio com 1400 metros quadrados foi adaptado a restaurante, após o investimento de cerca de 200 mil euros decidido pelos seus proprietários, Samuel Lopes e Paulo Gonçalves.
"Quando percebemos que o Governo estava a esquecer-se do nosso sector, tivemos de nos reinventar e entrar nesta vertente", salienta Paulo Gonçalves. "Pagamos imensos impostos, para os espaços serem seguros, terem videovigilância, e não estamos a cometer crime nenhum, só a tentar que a economia não pare".
"Se a Festa do Avante vai para a frente com 100 mil pessoas diárias, porque é que as discotecas não podem abrir?", questiona o proprietário da Lust in Rio, frisando que "estivemos todos confinados em casa, fazemos tudo certo, e com isto cada vez há mais festas ilegais, alugam-se casas em que não há qualquer controle de medidas sanitárias, alcoól ou drogas, fazem o que querem. E nós que gastamos milhões a montar os negócios e pagamos imensos impostos, temos de estar fechados".
A última decisão do Conselho de Ministros tornou os horários ainda mais restritos, passando a ser similares aos de cafés ou pastelarias: clientes só entram até à meia-noite, e o espaço tem de ficar vazio à 1h da manhã. "Qual é o problema para não podermos estar abertos até mais tarde? O vírus não tem um alarme a partir da 1h da manhã", aponta Samuel Lopes.
Face ao investimento realizado, "o nosso grande receio é o que vai acontecer a partir de setembro, e como se diz, a incerteza mata. Tem sido tudo a mudar, são alterações atrás das outras, e nós temos de estar num constante readaptar", faz notar o proprietário da Lust in Rio.
"É na animação noturna que tem havido problemas? Já houve algum surto na restauração? Que eu saiba, não. O que há é menos transportes públicos, e aí é que tem havido contágios do vírus", prossegue Samuel Lopes. "A DGS em vez de sentar connosco e chegar a um entendimento, nem fala no assunto. Estão a atirar milhares de pessoas para o desemprego. E o que queríamos também é ajudar os artistas, que com isto tudo estão parados".
O restaurante Lá no Rio funciona todos os dias das 17h às 24h, e sempre com uma programação diferente: às segundas passa música da M80, às terças tem a opção do 'sushi night, às quintas uma parceria com a Smooth FM, e às sextas, sábados e domingos tem um DJ da casa. Só não se pode é dançar.
"Isto é um espaço que no verão mete 3 mil pessoas, agora temos no máximo 400 lugares sentados, o que é trabalhar a 15%", refere Paulo Gonçalves, adiantando que tem havido diariamente boa recetividade dos clientes ao novo espaço.
Os proprietários do Lust in Rio frisam que foi possível esta reconversão porque o espaço tinha caraterísticas para tal, o que não é generalizado no sector. "Se eu quero comer uma torrada e um copo de leite, vou a uma pastelaria, se quero beber um copo e ouvir música, vou a uma discoteca. O Governo o que fez foi querer safar o problema dos holandeses amontoados que havia no Algarve na Praia da Oura, e os bares começaram a ter lá umas tostadeiras", notam.
No Algarve, a Bliss investiu 600 mil em nova localização
No Algarve, o sector das discotecas ressente-se fortemente por ter de estar parado. "Se fossemos desonestos, vendíamos vodca com pastel de nata", enfatiza João Magalhães, dono da discoteca Bliss, que este ano ia apresentar como novidade a nova localização em Vilamoura, um espaço onde foram investidos 600 mil euros, e que permanece encerrado. Outro investimento que a empresa ia fazer no antigo T-Club na Quinta do Lago, ficou suspenso.
"Mas de repente pode-se fazer a Festa do Avante, onde há música e alcoól, descaradamente com 100 mil pessoas por dia, e aí já se pode correr o risco de propagação do vírus, ainda por cima no Seixal onde tem havido focos de infeção. Porque é que se dá a umas pessoas e não a outras? Querem passar um atestado de estupidez, isto é escandaloso e revolta", indigna-se João Magalhães. "Não tenho nada contra a Festa do Avante, o que está em causa é com que critérios se decidiu e esta discriminação não é aceitável. O vírus não conhece cores políticas, trata-se de um problema de saúde pública, e isto é escandaloso".
Segundo o dono da Bliss, apresentámos uma proposta à DGS, que eu acho que funcionava bem, e é semelhante ao modelo do Dubai. O que foi sugerido foi as discotecas funcionarem em áreas ao ar livre só com camarotes, com mesas até um máximo de oito pessoas e um espaço reservado à volta, mas ainda não houve resposta. "Há um desprezo muito grande do Governo, não há diálogo, é uma enorme falta de respeito", considera.
"O que se passa em Vilamoura é que se fazem festas privadas com 1000 pessoas, vai lá a polícia fazer carga, e estão a esconder isso tudo. O que é preocupante é que estão a descobrir um novo negócio em casas alugadas no Algarve, com artistas, e que nos pode fazer concorrência depois do vírus passar", salienta João Magalhães.
E defende que "tem de se arranjar uma verba para conseguirmos passar esta tempestade no deserto. Percebo que o Governo tem uma missão difícil, mas nós estamos com estas dores".
Frisando que "a situação do vírus é grave e tem de ser tratada com respeito", João Magalhães, também proprietário do Mome em Lisboa (antiga Kapital) reconhece que em Lisboa "muitos espaços fechados dificilmente têm condições de prevenção, e devem permanecer encerrados, mas com um apoio financeiro". Já nas discotecas ao ar livre essa adaptação "seria possível de fazer", sustenta.
"As discotecas não são uma atividade que dê votos, mas na contribuição para o PIB o Governo vai ver que se enganou na conta", avisa João Magalhães. "O alcoól é das maiores receitas que o Estado tem em impostos indiretos. Nem para eles estão a ser bons".
João Magalhães frisa que "eu não fumo, não bebo, mas tenho paixão pelo negócio da noite. Tenho três filhos, e encaro a situação do vírus com a maior seriedade. Mas tenho pena de as nossas lutas não fazerem sentido, com estas politiquices".
AHRESP defende apoios de 80% sobre metade da faturação de 2019
"O Governo está a calcular mal, o dinheiro só está a chegar a meia dúzia de empresas de maior porte, mas não chega ao Zé povinho. A maioria dos bares dançantes no país são de pessoas com o seu próprio negócio, são eles a mulher e o filho, e estar há cinco ou seis meses encerrados e sem receita é muito grave. Toda a gente tem tido apoios, e no nosso sector até devia haver linhas especiais, tendo em conta que os espaços foram obrigados a fechar, está tudo parado, mas não temos quaisquer apoios. Para pedir empréstimo bancário é uma dificuldade tremenda, as linhas covid esgotam logo, e ninguém no sector consegue capoio dos bancos", enfatiza responsável da Associação de Bares, Discotecas e Similares.
"Isto vai correr mal. A partir de setembro, quando acabar a onda do verão, vamos ter um mar de insolvências e entupimento nos pedidos de subsídio de desemprego. Temos grupos no WhatsApp, sabemos que muitos já não estão a aguentar mais", adverte ainda Hugo Gonçalves, frisando que as regras de 'lay off' foram alteradas, e a partir deste mês as Finanças e a Segurança Social começam a cobrar, mesmo às casas que estão fechadas, vai ser um descalabro".
Também o presidente da ADN enfatiza que o 'lay off' transversal aos vários sectores foi o único apoio financeiro com que os bares e discotecas contaram em ambiente de covid-19. "De resto não houve mais nada. E as empresas após estar a pagar um terço dos ordenados, ao fim destes meses todos e sem receita, já não estão a aguentar", alerta João Gouveia, defendendo que para o sector "tem de haver uma linha de apoio a fundo perdido , para cobrir as despesas que tiveram até à data estando encerrados, tal como se fez na Alemanha, e tudo isto é calculável pela própria Autoridade Tributátia (AT)".
Sobre a situação dos trabalhadores, o presidente da ADN recorda que no caso das discotecas há muitos segundos empregos e de forma sazonal, "mas há pessoas e famílias inteiras que dependem diretamente desta atividade, acrescendo-se que a noite não vive só de bares, é uma indústria tremenda, e o sistema que gravita à volta das discotecas é imenso, desde logo os artistas e os fornecedores".
A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) já propôs ao Governo a atribuição de um incentivo não reembolsável equivalente a 80% de metade do volume de faturação registado no e-Fatura em 2019 às empresas de animação noturna como apoio à sua liquidez, defendendo que esta medida "deve ser operacionalizada pelo Turismo de Portugal e cumulável com todos os apoios que atualmente se encontram em vigor". A associação lembra que apresentou ao Governo no final de junho um programa de apoio para as empresas de animação noturna, relativamente ao qual "ainda aguarda resposta", e frisa que estes apoios específicos às discotecas e bares noturnos têm caráter de "urgência", uma vez que se mantem "o encerramento por decreto" e "sob pena de assistirmos a insolvências em massa antes do final do verão".
A AHRESP já tinha submetido ao Governo um guia de boas práticas para as discotecas poderem funcionar lidando com a covid-19, tal como o fez com os restaurantes, e que foi pensado para servir de base a orientações específicas da Direção-Geral da Saúde (DGS) e ser validado pela ASAE. Entre várias medidas, foi proposto que fossem marcados no chão das pistas de dança quadrados de 2,25 metros, para as pessoas manterem distanciamento.
Elefante Branco pôs Governo em tribunal
Em Lisboa, o Elefante Branco é outro dos espaços noturnos que conseguiu reabrir, graças ao facto de ter um restaurante, "que é conhecido pelo bife", conforme frisa o seu proprietário, Luis Torre, mas agora com distanciamento de dois metros entre as mesas, entre todas as regras sanitárias.
Mas há muito menos clientes. "Este tipo de casas funcionam depois das refeições, porque as pessoas querem-se distrair. E as pessoas só podem beber se estiverem a comer", faz notar o dono do Elefante Branco, lembrando que "os 'strippers' estão todos encerrados, e casas deste tipo, como o Gallery e o Hipopotamus também não conseguiram reabrir".
"O legislador tem alterado constantemente a legislação, e deve viver noutro planeta. Até à resolução do Conselho de Ministros, tinhamos de fechar a porta às 11h da noite, mas os clientes podiam ficar no horário da casa, até às 4h da manhã. Mas agora temos de fechar a porta à meia-noite, e o espaço tem de estar devoluto à 1h da manhã", refere o dono do Elefante Branco. "O que é caricato: se um cliente entrar cinco minutos antes da meia-noite e pedir um bacalhau que demora tempo a executar, não tem tempo de o comer neste horário. Eu até gostava de facilitar, mas depois prendem o dono do Elefante Branco por desobediência".
O Elefante Branco moveu uma providência cautelar contra a resolução do Conselho de Ministro e a nova imposição de horários. "Todos os dias temos polícia à porta a controlar os horários. A Festa do Avante vai-se realizar, é uma vergonha, e estão a montar estádios no Terreiro do Paço por causa do futebol", considera o proprietário.
"Temos 25 funcionários, tivémos de pagar agora 50 mil euros à Segurança Social para pagar a nossa parte do 'lay off'. E o Estado não paga o lay off a tempo e horas", frisa ainda Luis Torre.
"Estamos de braços atados e sem previsão de futuro. O problema grave é não haver do lado do Governo uma luz ao fundo do tunel. E ou o país fecha e o Estado paga a todos, ou a vida não pode parar", salienta.
"Os empresários da noite têm reclamado pouco. A Festa do Avante que se vai realizar é uma vergonha, e estão a montar estádios no Terreiro do Paço por causa do futebol. O país deixou de ter um povo com voz, e depois de 48 anos de ditadura aceita isto tudo de forma resignada. Aproxima-se uma política de terra queimada, caminhamos para a fome e a miséria", prevê Luis Torre.
Cada Conselho de Ministros "é como uma lotaria"
"Houve muito barulho à volta disto com a resolução do Conselho de Ministros, mas o que o Governo disse foi que as discotecas e bares continuam encerrados, ponto final parágrafo. Já podíamos pegar nos espaços e fazer 'snack bars' ou salões de chá como se falou, e alguns adotaram essa possibilidade e começaram a fazer refeições ligeiras", refere o presidente da Associação de Discotecas Nacional, lembrando que a decisão tomada em Conselho de Ministros foi explícita a nível de horários, passando as discotecas nesta modalidade a ter as mesmas regras dos 'snack bars', fechando as portas às 20h na área metropolitana de Lisboa e à 1h da manhã no resto do país.
Aguardada com expetativa pelo sector, é a atualização que poderá ser feita no próximo Conselho de Ministros, a 13 de agosto. "Mas não está prevista nenhuma alteração para os bares e discotecas", enfatiza José Gouveia. "Para nós, cada Conselho de Ministros é como a lotaria, anda à roda e estamos sempre a ver qual o prémio que sai. Se estipulassem que os bares podiam estar abertos até às 2h da manhã, já era abrir uma janela para depois se poder abrir uma porta".
O presidente da ADN frisa que "no sector das discotecas estamos dispostos a aceitar restrições para reabrir". Lembra que "esta indústria com tudo o que gravita à sua volta envolve muitos empregados e tem um impacto imenso no turismo" e garante que "é mais seguro uma discoteca funcionar com 400 pessoas que uma festa particular com 40, porque nas discotecas há regras".
João Magalhães, dono do Bliss, reitera que "eu até aceito estar fechado para não ser um agente propagador da doença, mas as medidas têm de ser iguais para todos, e tem de haver apoios para a pancada não ser tão grande". E quando há luz verde para a Festa do Avante e as discotecas continuam encerradas, "já não estamos a discutir segurança, a partir daqui o que existe é revolta", conclui.