No oratório de madeira com mais de 200 anos está um sacrário de metal precioso que se abre como uma pequena caixa de joias. Lá dentro, no meio de um tecido branco e bordado, repousa uma taça vazia — uma píxide — sem hóstias.
No dia mais triste da vida da irmã Maria Madalena de Jesus, hoje com 89 anos, o corpo de Cristo foi retirado da casa da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus para nunca mais voltar. O castigo foi decretado pelo bispo de Angra do Heroísmo, António de Sousa Braga, que acusou a superiora desta associação de fiéis de persistir “na falta de comunhão com a Igreja, na pessoa do bispo de Leiria-Fátima [António Marto]”, suspendendo, por isso, “a licença de oratório”.
A Igreja só concede a licença de oratório a uma capela privada depois de uma visita canónica, e, em 2000, o padre visitador, José de Freitas Fortuna, certificou que na casa das irmãs da Pia União “tudo estava estruturado com gosto, arte, zelo e fé” e manifestou a esperança de que em “todos os oratórios, ermidas e igrejas dos Açores tudo estivesse assim preparado para receber o senhor Jesus”.
“A retirada do Santíssimo foi uma represália”, acusa Maria Madalena, que decidiu declarar guerra à Igreja nos tribunais por causa do património imobiliário que a Pia União juntou ao longo de 50 anos e que a Igreja entende serem bens eclesiásticos de que a freira não pode dispor. São 16 prédios e alguns terrenos avaliados em cerca de 5 milhões de euros e que estão a ser disputados em vários processos em tribunal que têm tido decisões contraditórias e que se arrastam há 11 anos, sem fim à vista.
“As minhas irmãs religiosas e as de sangue já morreram todas. Quando o processo começou, ainda éramos quatro. Agora, sou a última e não sei se isto vai acabar enquanto estiver viva”, diz a única sobrevivente da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus. Está sentada num sofá vermelho da casa com vista aberta para o Pico, sempre coberto por nuvens. Fala baixo e com alguma dificuldade. Mas com dureza: “Estão a agir por cobiça.”
“A CASA É DA FAMÍLIA, NÃO DA IGREJA”
Maria Madalena nasceu Gabriela Soares Ferreira há 89 anos nesta casa da Rua Conselheiro Medeiros, a poucos metros da Igreja de São Francisco, que já foi reconstruída duas vezes, depois de ter sido destruída por um incêndio ateado por corsários e por uma tempestade que chegou ao centro da capital da ilha do Faial. “A casa está na família desde os meus trisavós”, conta. “É da família, não é da Igreja, nem nunca foi.”
Maria Madalena tem um olhar azul vivo, o cabelo branco apanhado num carrapito impecável e está, como sempre, toda vestida de preto. “É a roupa de todos os dias. Só vestimos o hábito em ocasiões especiais e é a nossa mortalha quando morremos.” Mudou de nome quando tomou o hábito, já só anda com a ajuda de um andarilho, não sai de casa a não ser para ir ao hospital e contar a sua história cansa-a e exaspera-a. Só há de chorar uma vez, por causa do Santíssimo ausente.
Em 2005, depois de ter sido atropelada em Fátima, decidiu dar destino aos bens — imóveis e dinheiro — que a Pia União foi juntando desde 1959, quando receberam ordem de ereção por parte da Igreja Católica, uma espécie de certificação de que é uma ordem que segue os preceitos e fins dos católicos. A ordem foi dada a pedido da própria Pia União. E isto é um detalhe importante para a guerra judicial.
“Estão a agir por cobiça”, alega Maria Madalena. a Igreja diz que os bens não podem ser doados a particulares
“Eu tinha a intenção de ser freira desde os 13 anos, mas a minha mãe nunca quis. O nosso pai tinha morrido novo, e ela era muito agarrada a mim e aos meus irmãos. Não nos queria longe.” Aos 26 anos, Maria Madalena juntou-se a Maria José Costa, professora primária como ela, e fundaram a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus. Eram oito raparigas, todas açorianas, quase todas professoras primárias, que adotaram nomes religiosos como Maria de Jesus, Maria das Cinco Chagas, Maria da Eucaristia ou Maria da Paixão.
Maria de Jesus foi a primeira superiora, e quando morreu, aos 60 anos, Maria Madalena de Jesus foi eleita para o cargo pelas outras irmãs. “Começámos numa casa pequena em Fátima, que arrendámos a uns parentes dos pastorinhos. Dormíamos em enxergas no chão e dedicámo-nos ao ensino de crianças e a apoiar as famílias pobres em tudo. Tomávamos conta das crianças, ajudávamos com a casa, com a comida, com tudo.”
A Pia União foi crescendo, à conta dos negócios de compra e venda e arrendamento de propriedades que as irmãs iam fazendo e das heranças que recebiam e punham em nome das Escravas do Divino Coração de Jesus, porque, de acordo com os estatutos, não podiam ter nada em nome próprio.
Uma das maiores casas, construída em Fátima, funcionou como escola e estúdio para a telescola, onde Maria Madalena de Jesus deu aulas de Matemática e de Português difundidas pelo país inteiro. Foram abertas casas em Fátima, Coimbra e Açores. As irmãs dedicaram-se essencialmente ao ensino pré-escolar e ao alojamento de jovens açorianas que iam estudar para o continente e não tinham onde ficar. Nunca houve qualquer conflito com a hierarquia da Igreja.
Depois do atropelamento em Fátima, Maria Madalena passou seis meses internada num hospital, onde se terá apercebido da sua mortalidade. Naquela altura, há 11 anos, já só havia quatro irmãs vivas e “era preciso garantir a continuidade do trabalho da Pia União”, explica agora.
Dois terrenos na zona de Fátima foram doados à Igreja, e a casa do Faial foi entregue a um sobrinho da superiora, Pedro Seixas Antão, que é procurador da Pia União. O resto dos bens foram afetos a uma fundação entretanto criada, a Fundação das Escravas do Divino Coração de Jesus, presidida pelo mesmo sobrinho e que tem nos estatutos como “fins principais os prosseguidos no âmbito da segurança social” e “como propósito secundário a valorização do seu património”.
No início, a Igreja não levantou qualquer objeção, e um decreto assinado pelo então bispo de Leiria, Serafim Ferreira e Silva, reconhecia à superiora “os poderes para praticar os atos necessários à criação de uma fundação de natureza social” e para assegurar a continuidade “da ação social” através da venda e compra “de quaisquer propriedades nos termos e condições que entender”.
“BENS EM RISCO”
Mas “na fase de afetação dos bens à Fundação descobrimos que uma casa das irmãs, em Coimbra, estava no nome do Seminário Pio XII e intentámos uma ação para a passar para o nome da verdadeira proprietária, a Pia União”, conta Pedro Seixas Antão. Em julho de 2008, um tribunal de Santarém deu razão à Pia União e considerou que a casa de Coimbra era da Pia União e não da Diocese. No dia seguinte, 15 de julho, a Igreja, através do novo bispo de Leiria-Fátima, António Marto, cardeal e número dois da Igreja em Portugal, faz dois decretos em que considera que a transferência de bens da Pia União para a Fundação “acarreta sério prejuízo no património daquela pessoa coletiva” e nomeia dois comissários para dirigir a Pia União, afastando a superiora Maria Madalena de todos os assuntos “não religiosos”.
Controlando agora a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, a Igreja desiste da ação judicial da casa de Coimbra, que mantém em nome do Seminário Pio XII, e intenta uma ação contra a constituição da própria Fundação.
Em resposta enviada por escrito ao Expresso, Jorge Guarda, vigário-geral da Diocese, reconhece que o bispo Serafim Ferreira e Silva, “confiando na bondade da iniciativa, assinou as credenciais que possibilitassem a legalização civil da Fundação”. Mas, tendo conhecido e examinado atentamente os estatutos da Fundação, o atual bispo, António Marto, “verificou que ela não assegurava a continuidade de uma instituição canónica nem as suas finalidades religiosas, apostólicas e de prática das obras de misericórdia, por se tratar de uma instituição somente civil e não religiosa, totalmente desligada da Igreja”.
A Igreja acusa ainda Pedro Seixas Antão de, ao acumular o cargo de procurador da Pia União com o de presidente da Fundação, fazer negócios “consigo mesmo”. Pedro Seixas Antão nega as acusações e diz que num dos decretos o cardeal Marto acaba por reconhecer que a Pia União é uma associação privada “ao citar o artigo do Código Canónico referente a este tipo de associações. Está preto no branco”.
ONZE ANOS SEM SENTENÇAS FINAIS
Começava uma guerra jurídica com várias frentes: a Igreja alega que a Pia União é uma associação pública de fiéis e que, por isso, os bens que estão em seu nome são eclesiásticos e devem ser “destinados a fins religiosos”. A irmã Maria Madalena alega que a Pia União foi fundada por iniciativa própria e que, por isso, é privada. Logo, pode dispor dos bens como quiser. “E como sempre fez”, precisa Pedro Seixas Antão.
Nos anos 50, o Código Canónico (o Código Civil da Igreja) era omisso em relação a esta distinção e só o novo Código, revisto em 1983, distingue as associações públicas, controladas pela Igreja, das privadas, geridas por particulares. Os tribunais ainda não deliberaram definitivamente sobre esta questão e será o Supremo Tribunal de Justiça a tomar uma decisão final sobre este ponto, que poderá influir em todos os processos.
A Igreja começou também por alegar que os tribunais eclesiásticos, dirigidos por padres, é que têm competência para julgar este caso, argumento que tem sido rejeitado pelos tribunais civis, que se consideram competentes para decidir de quem são os bens.
A doação da casa do Faial e a afetação dos bens à Fundação também está a ser analisada no Supremo Tribunal de Justiça, depois de decisões contrárias dos tribunais de Primeira Instância e da Relação. “Na doação de bens ao sobrinho há um desvio dos fins religiosos para proveito pessoal de um seu familiar”, argumenta o vigário-geral. “No caso da afetação dos bens eclesiásticos da Pia União à Fundação significa na prática destiná-los a uma instituição sob o controlo pessoal do mesmo sobrinho da irmã superiora, que deles passa a poder dispor à sua livre vontade”, conclui Jorge Guarda.
Indiferentes ao tempo da Justiça, as térmitas já tomaram conta da casa de Fátima, que chegou a ser a maior e a sede da Pia União. “A Fundação não tem atividade”, reconhece Pedro Seixas Antão. “Está tudo parado por causa dos processos.”
Todos os dias, uma freira de uma ordem religiosa da Horta vai à casa das irmãs da Pia União para que Maria Madalena possa receber a hóstia consagrada. “Vem autorizada pela hierarquia. A minha guerra não é com a Igreja, é com alguns sacerdotes.”
CRONOLOGIA
1959
Nasce em Fátima a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, por iniciativa de oito mulheres açorianas. A associação recebe ordem de ereção da Igreja, que a reconhece como católica
2006
É constituída a Fundação das Escravas do Divino Coração de Jesus, que fica na posse dos bens da Pia União. A Igreja, através do bispo Serafim Silva, ao início não se opõe
2008
A Fundação entra com uma ação em tribunal para recuperar uma casa em Coimbra que fora colocada em nome do Seminário Pio XII e um tribunal de Santarém dá-lhe razão
2008
O novo bispo, António Marto, considera que os bens da Pia União estão em risco, nomeia dois comissários para a dirigir e mantém a casa de Coimbra em nome do Seminário Pio XII. E intenta uma ação contra a constituição da Fundação e a doação da casa ao sobrinho da madre superiora
2019
Onze anos depois, há várias decisões contraditórias nos tribunais e três recursos pendentes no Supremo Tribunal de Justiça. A grande questão é: a Pia União é pública ou privada? Os seus bens são eclesiásticos ou são como quaisquer outros?
€5 MILHÕES DE PATRIMÓNIO
Horta
Há uma casa ampla de três andares com vista para a ilha do Pico e a doca da Horta, que é onde a irmã Maria Madalena nasce, vive e quer morrer. Deixou a casa a um sobrinho, mas a Igreja pretende anular a doação
Fátima
Uma das casas mais valiosa da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus é um imóvel de dois andares em Aljustrel, perto de Fátima, onde funcionou uma escola e onde foram filmadas aulas da telescola. Presentemente, está abandonada e entregue às térmitas. Há ainda uma casa térrea com terreno em Caldeireira
Coimbra
O imóvel que deu origem à guerra estava em nome da Diocese, mas um tribunal diz que é da Pia União, que o terá comprado. É usado ainda hoje por jovens estudantes dos Açores que vão estudar para o continente
Açores
Há um solar de 12 divisões em São Miguel que foi alugado ao Instituto de Apoio à Criança dos Açores. Esta instituição passou a pagar a renda à Igreja. Outra casa, em Ponta Delgada, foi alugada à Associação Novo Dia, que também deixou de pagar a renda à Pia União e passou a entregá-la à Igreja. Há ainda outras casas mais modestas, espalhadas pela Horta, Povoação e Ponta Delgada
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RGustavo@expresso.impresa.pt