Às 32 semanas não é suposto nenhum bebé nascer. O bebé ainda está longe de estar pronto para enfrentar o mundo. Foi isso que aconteceu com o bebé que foi atendido no hospital de Faro e entretanto transferido para o Amadora-Sintra, em Lisboa: nasceu às 32 semanas e estava longe de estar pronto para enfrentar o mundo. Os pulmões não estavam formados, pouco maturados - assim dirão os médicos - para funcionar fora do útero. A mãe apresentava sintomas de pré-eclâmpsia (tensão arterial muito alta), que entre os raríssimos casos de morte materna é a principal causa. O cenário era complicado e em Faro não havia incubadoras disponíveis para o bebé. A unidade de saúde mais próxima e com disponibilidade para receber e prestar os cuidados necessários, quer à mãe quer ao bebé, era o Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, mais conhecido como Amadora-Sintra, a quase 300 quilómetros de distância.
“Não sei se era possível o bebé ter sobrevivido”, diz ao Expresso João Bernardes, presidente do colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos. “Só após o inquérito podemos responder a essa questão.” A Ordem já pediu a abertura da investigação, os hospitais de Faro e o Amadora-Sintra também abriram processos internos e o Ministério Público vai analisar o caso. “A informação que tenho é que o bebé foi transferido in utero, ou seja, dentro do abdómen materno, que é a melhor das práticas porque a melhor incubadora é sempre o ventre materno. Tinham vaga no hospital onde foram recebidos.” Mãe e filho deram entrada na noite de 2 de agosto e só na manhã do dia seguinte o parto foi feito “porque a isso se justificou”. “Dá-me a sensação de que não houve aí um problema de disponibilidade de ventilação no hospital que recepcionou o bebé - caso contrário não o tinham recebido.”
“Genericamente, a questão da maturação pulmonar tem que ver com a prematuridade, o facto de o bebé ter menos de 37 semanas. Até essa altura não há maturação pulmonar e o bebé não é capaz de respirar sem auxílio médico.” Uma vez o parto feito, o bebé “precisa de unidade de cuidados com ventilação, ou seja, uma unidade de cuidados intensivos neonatais, precisa de uma vaga e de um ventilador.”
Além de sintomas de pré-eclâmpsia, a mãe tinha um descolamento da placenta, apurou o Expresso junto de fonte hospitalar. Um vez chegados a Lisboa, o parto não foi realizado de imediato devido à deficiência respiratória do bebé. Então, a mãe foi submetida a um tratamento com corticoides para acelerar o desenvolvimento da maturação dos pulmões do bebé, mas não foi suficiente. “Habitualmente o que é feito em casos para acelerar o desenvolvimento dos pulmões é a terapêutica dos corticoides e, se for possível, adia-se o parto por 48 horas para dar tempo à maturação. Se não for possível, temos de terminar a gravidez logo que se imponha. Tentamos sempre manter a gravidez até ao limite sem pôr em causa a saúde seja de quem for”, explica João Bernardes.
Neste caso, não foi possível esperar. Na manhã seguinte à chegada ao Amadora-Sintra, o bebé nasceu. Morreu momentos depois.
“Uma vez feito o parto, e se tudo correr de acordo com o considerado normal e se o bebé tiver os cuidados neonatais necessários, a taxa de sobrevivência é bastante boa mas não é 100%. Uma vez mais, depende do tipo de prematuridade”, aponta João Bernardes.
Os pais sabiam o que podia acontecer. Aconteceu.
Mais do que deficiência respiratória
A pré-eclâmpsia da mãe pode ter provocado no bebé uma restrição de crescimento, alerta o presidente do colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos. É frequente que o bebé ainda não tenha atingido o tamanho desejado para o seu tempo de gestação. Isso associado à prematuridade e à não maturação dos pulmões complica ainda mais o caso.
“Uma coisa é um prematuro considerado saudável em que o problema é a maturidade, outra é um prematuro com doença, que não tenha crescido, que tenha insuficiência cardíaca ou renal, por exemplo. Nesses casos a mortalidade aumenta muitíssimo”, diz o médico. “E nos casos de pré-eclâmpsia grave - que terá sido a situação - é frequente que os fetos tenham, além da prematuridade, restrição grave do crescimento, muito associada a insuficiência cardíaca e renal. O risco de morte neonatal é muito maior, mesmo com cuidados de ventilação, mesmo com todo o tipo de cuidados.”
No Amadora-Sintra há 22 postos de neonatologia, inclui incubadoras e ventiladores. Um número grande, apenas disponíveis em serviços neonatais de grande dimensão. Em Faro são bem menos, dez, e, como o próprio hospital admitiu em comunicado, estavam lotados no momento em que os pais ali deram entrada.
O procedimento define que não havendo vaga cabe aos serviços médicos identificar a unidade hospitalar mais próxima com disponibilidade, neste caso para atender mãe e filho. Na teoria, o primeiro seria o hospital de Évora, que é de apoio pré-natal diferenciado e capacidade para receber prematuros. “Sabemos que tem carências brutais há anos, que é um dos hospitais mais carenciados da rede, e, portanto, imagino que não teria vaga”, diz João Bernardes. O seguinte, uma vez mais na teoria, seria o Garcia de Orta, em Almada. Mas alguma indisponibilidade nos serviços que mãe ou filho pudessem vir a precisar fez com que fossem levados para o Amadora-Sintra.
“Há fluxograma de transferências nos serviços e, seguramente, é seguido dependendo de haver ou não vaga nos serviços. Por vezes, o que está mais perto não tem vaga, tem de ir para o seguinte, outras vezes não se consegue fazer o contacto em tempo útil”, explica o médico. “Uma vez mais: não estamos apenas a falar do bebé, possivelmente era preciso um sítio que tivesse apoio para transfusões sanguíneas ou cirurgia. Não se pode generalizar e é preciso ver o caso, perceber o tipo de recursos necessários, tanto maternos como neonatais.”
A falta de recursos humanos não é uma novidade nos serviços de saúde, explica João Bernardes, recordando até as recentes notícias sobre a falta de especialistas durante o mês de agosto nas maternidades. “Os quadros médicos estão muito envelhecidos e cerca de dois terços dos médicos têm mais de 55 anos, o que significa que não fazem urgências ou cuidados intensivos, e o ritmo de substituição não tem sido suficiente para cobrir estas necessidades. Falta renovação.”
As transferências de pacientes entre hospitais é comum e vai acontecendo um pouco por todo o país e ao longo do ano. Mas, por vezes, há “um pico e é impossível dar resposta”. “Em períodos de crise é evidente temos de pensar que a situação pode tornar-se mais complicada. Por isso, neste contexto, ainda é mais necessário que este caso seja devidamente esclarecido porque a opinião pública tem sido constantemente informada sobre a existência de problemas. É importante que as pessoas continuem a confiar no sistema porque a verdade é esta: os cuidados a situações graves estão assegurados porque o sistema faz tudo para o garantir. Quando dizemos que os serviços estão com dificuldades, isso começa nas consultas ou nas cirurgias programadas. Isto aqui é o último reduto, é onde normalmente o sistema se mantém seguro até ao fim. Mas, por vezes, isso também pode não acontecer.”