Exas.
Venho pela presente e para cumprir a minha não progressão na carreira, requerer que o tempo atribuído aos docentes - por terem sido alvo de quase 10 anos de congelamento da progressão, agora transformado em quase três - não me seja aplicado. É que, aos quase 52 anos de idade e com quase 24 de serviço docente, me encontro no 3º escalão com a possível progressão ao seguinte, em maio de 2021 (sem a aplicação dos tais quase três anos). Habituei-me à ideia e já estou conformado. Na minha casa, em conjunto com a família partilhei que, a bem ver, a austeridade já tinha vindo para ficar. A minha mulher, conhecendo-me bem, nem estranhou. Os filhos e filhas de que temos a graça de sermos pais irão compreender seguramente. E eu, enquanto professor por opção e motivação – a mais bela profissão e atividade do mundo – não poderia deixar que uma mensagem errada passasse na construção das suas personalidades e carácter. Não critico os tantos colegas que procuram qual a melhor forma de não serem mais prejudicados, mas em boa verdade, se for atrás da multidão, pouco terei a ensinar aos miúdos. Nas nossas experiências e vivências, através do que decidimos e assumimos, é aí que deixamos o nosso testemunho de cidadania, de ética, de valores e de liberdade.
Das primeiras coisas que me atormentaram, se fosse atrás do “prato de lentilhas” que nos apresentam, foi o meu pensamento sobre os nossos avós, o que passaram e o que lutaram para que hoje eu possa redigir uma missiva desta natureza. Em particular, os meus dois bisavôs foram presos por lutarem contra o regime de antanho, o paterno esteve deportado em S. Tomé e Cabo Verde quase 13 anos. O outro, por ser dono de uma tipografia, várias vezes foi parar a Caxias. O meu avô paterno também era tipógrafo (genro do anterior) e o meu pai passou longos períodos sem o pai, que se “alojara” no Aljube.
Não ficaria bem comigo mesmo e, uma destas noites acordei com este mesmo assunto em intermitência. É/será o preço a pagar pela consciência que construí, à volta dos valores que os meus antepassados já defendiam.
Tenho imensa pena pelo que a profissão docente se veio a transformar. E posso assegurar que a conheço bem. Houve um momento de grande rebeldia, é certo, mas de grande construção coletiva, onde cresci enquanto aluno, pessoa e professor (um aprendiz sempre...).
Não poderei trair o que sou. É mais importante do que possa vir a ter.
Rui Madeira
Diretor da Escola Artística António Arroio
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