19 junho 2019 22:21
humans before borders
Miguel Duarte nunca antes tinha feito trabalho humanitário. Em 2016, juntou-se a uma organização não governamental e foi para o Mediterrâneo: primeiro como tradutor, depois como a pessoa que faz o primeiro contacto com os migrantes. É arguido num processo em Itália e suspeito do crime de auxílio à imigração ilegal. Em entrevista ao Expresso, o voluntário de 26 anos diz que nunca foi abordado por traficantes e conta o que viu: “A verdade que custa saber é que há muita gente que morre e ninguém dá por isso e nem chegam a fazer parte das estatísticas”
19 junho 2019 22:21
O Miguel Duarte é arguido, juntamente com outros nove membros da tripulação, numa investigação de auxílio à imigração ilegal. O caso está desenrolar-se na Justiça italiana e a pena por este crime pode chegar aos 20 anos de prisão. Porque diz que aquilo que fez não é crime?
O que fazemos é salvar a vida das pessoas. É a coisa mais simples do mundo: a pessoa está a afogar-se e salvamos. Não só é legal, como é obrigatório. A Convenção das Nações Unidas define que os Estados têm de garantir o resgate se alguém estiver no mar e, em seguida, deve levá-la para porto seguro. Isto é uma lei antiquíssima. Basicamente, não fizemos mais do que a respeitar. E digo mais: fizemo-lo em coordenação com órgãos do Estado italiano, porque todas as nossas operações eram coordenadas pelo Centro de Coordenação Marítima de Roma.
E isso não faria dessa instituição também cúmplice do crime?
Pois… [risos]
O que está realmente aqui em causa?
Trata-se da suspeita de um crime de auxílio à imigração ilegal e na lei italiana é um crime grave e fortemente punido.

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Como e quando começou a participar em operações de salvamento e resgate no Mediterrâneo?
Estava a acabar o mestrado e, tal como qualquer pessoa em Portugal e na Europa, já tinha ouvido muitas notícias sobre o sofrimento às portas da Europa, sobre os migrantes e refugiados que tentam encontrar uma vida melhor. Foi em 2016. Via que nada estava a ser feito, sobretudo pelos governos, que são os que têm a obrigação primária de ajudar nestas circunstâncias. Sentia que a minha vontade não estava a ser representada pelos países europeus e achei que isso me incutia algum sentido de responsabilidade, que deveria fazer algo sendo que não tenho influência em lado algum. Então fui procurar projetos que fossem úteis e encontrei a Jugend Rettet [a organização não governamental alemã que detém e opera o navio "Iuventa"].
E como chegou até eles?
Uma amiga minha alemã estava de visita a Portugal e falou-me deles. A organização estava a começar, era julho de 2016, e estavam a meio da primeira missão de resgate. Salvaram mil pessoas. Até então, nem sabia que existia resgate civil no Mediterrâneo e tudo isto impressionou-me.
Mas não é qualquer pessoa que pode juntar-se a uma tripulação e salvar pessoas. Não foi necessária formação especializada, algum tipo de curso?
Nos navios precisamos de gente especializada: de um capitão acreditado para exercer, pilotos, médicos, enfermeiros... Depois também precisamos de gente que não tem de ser tão especializada, mas cuja ajuda é importante. E aí o que mais importa é manter a cabeça fria. Um trabalhador humanitário que não reage em situação de desgraça não é grande ajuda.
Qual foi o seu papel nas missões? O que fazia exatamente?
Na minha primeira missão [setembro 2016] entrei como tradutor, era também mais um par de mãos a ajudar no convés. À medida que ganhei experiência, ia assumindo outras funções. Fui em quatro missões, cada uma delas dura habitualmente três semanas, e mais para o final era também a pessoa de contacto no navio de resgate. Ou seja, era o primeiro contacto com os migrantes, dava as primeiras indicações e distribuía os coletes salva vidas. Na prática, o que acontece é que andávamos a patrulhar águas internacionais. Eventualmente, encontrávamos um barco e resgatavamos as pessoas. Muitas vezes chegamos tarde, muitas vezes as pessoas não resistiram, muitas vezes não sabiam nadar. Se temos um barco de borracha que fura, de repente, em vez de 150 pessoas em cima do barco, temos 150 na água. Simplesmente não é possível uma tripulação salvar tanta gente em tão pouco tempo. Perdemos gente por falta de meios.

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Anteriormente já tinha estado ligado a movimentos, missões ou associações humanitárias?
Já tinha integrado alguns projetos sociais. Em trabalho humanitário esta foi a primeira experiência. Quando não estava no mar, fui para os campos de refugiados na Grécia (Kara Tepe, na ilha de Lesbos) e na Turquia (campos não oficiais).
Em todo este tempo, alguma vez foi abordado por traficantes ou por redes de tráfico de migrantes?
Não, nunca fui. Mas, logicamente, só posso falar por mim.
Como soube que estava a ser investigado?
Não sei quando a investigação começou. Tivemos consciência de que estava em curso a 2 de agosto de 2017, quando o navio foi apreendido. Quase um ano depois, em junho de 2018, fomos constituídos arguidos. Ainda não há acusação formal, por isso não há data para irmos a tribunal.
Mas foram interrogados ou houve algum contacto por parte da Justiça italiana?
Não, até agora nada. Fomos apenas notificados de que éramos arguidos, não houve mais comunicação com as autoridades italianas. Neste momento, tenho um advogado italiano a tratar da defesa e apoio jurídico em Portugal.
E por parte do Estado português, já alguém o contactou?
Não, ninguém falou comigo. [A entrevista foi realizada nesta terça-feira e, nesse momento, o Ministério dos Negócios Estrangeiros ainda não tinha falado com Miguel Duarte, apesar de já ter dado garantias de que o apoio estava a ser prestado. Entretanto, já esta quarta-feira agendou uma reunião mas para a qual ainda não há data].

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O que se vê no mar?
São milhares e milhares de pessoas que nos passam pelas mãos e que chegam em completo desespero, fogem de tudo e mais alguma coisa e vêm dos mais variados países. Têm em comum uma coisa: fogem do terror da Líbia, onde se sabe que há mil e uma violações de Direitos Humanos, onde há campos de detenção em que as pessoas são escravizadas e torturadas. O que vemos são estas pessoas desesperadas, uma maioria que não tem outra escolha além de se pôr num barco naquelas condições. São centenas com pouquíssimas probabilidades de chegarem ao outro lado, vêm na expectativa de encontrarem uma vida digna na Europa.
Qual foi a ocasião em que salvaram mais pessoas?
Foi na minha última missão, julho de 2018. Durou menos de duas semanas e resgatamos 3700 pessoas.
E quando perderam mais pessoas?
[Pensa] Não sei. É difícil dizer porque os barcos vêm com um certo número de pessoas e muitas vezes encontramos um barco furado, em que as pessoas vão caindo. Salvamos as que pudermos e não sabemos quantas perdemos. A verdade que custa saber é que há muita gente que morre e ninguém dá por isso e nem chegam a fazer parte das estatísticas.
Quem vem espera encontrar uma união de países, um destino melhor e afinal...
O que se passa é que afinal a Europa não está assim tão unida. O que acho que aconteceu é que a intensificação do fluxo migratório revelou a fragilidade da união e facções políticas conseguiram aproveitar uma situação económica deteriorada da população europeia para encontrarem um inimigo comum: os migrantes. Foi o que a Liga de Mateo Salvini [Itália] conseguiu fazer e é o que Viktor Orbán [Hungria] também está a fazer.
Há um argumento muito comum entre quem é contra a ação das operações de organizações não governamentais no Mediterrâneo: que estarem lá incentiva mais migrantes a fazerem a travessia porque sabem que vão ser salvos. Como refuta?
Acho esse argumento absurdo e incrível que tenha ganhado tanta atração. O que não faltam são estudos que desacreditam essa teoria. O facto é que as pessoas não param de morrer e a verdade é que muitas vezes o número nem diminui quando os navios não estão no mar. Tivemos naufrágios enormes em 2013, quando não havia operações de resgate. Então criou-se a operação 'Mare Nostrum', guiada pelo Governo italiano, 150 mil pessoas foram salvas. A seguir, os governos europeus acharam que era muito cara e acabaram com a 'Mare Nostrum'. Morreram mais mil e não sei quantas pessoas no mar. Apareceram as organizações, que salvaram uma data de gente. Em 2017, começa-se a criminalizar as organizações. No ano passado, o número de organizações decresceu brutalmente e tornou-se num dos anos com maior taxa de mortalidade. Os números são claros.